quinta-feira, 19 de abril de 2012

Alguns fatos subversivos sobre crescimento

Update (2/Maio): não deixe de ver uma atualização de alguns dados deste post (Argentina...) aqui.

O historiador Timothy Garton Ash acertou em cheio na escolha do nome do seu (ótimo) livro sobre política na década dos 2000: fatos são altamente subversivos - e isso também vale para economia. Muitas teorias elegantes e dogmas ideológicos não resistem a um bom exame de dados e da realidade que representam.

Ontem, em meio a todo o barulho em torno da reestatização da YPF e as conclusões inevitáveis de que a política econômica argentina é um lixo, o Fabio, do Torre de Marfim, apareceu com as seguintes provocações (melhor lido de baixo para cima):


Meu espírito de São Tomé me levou a checar os dados e montar as seguintes tabelas - e notar que o Fabio estava certo:


Escolhi três períodos meio arbitrariamente: (i) um bem longo, de 30 anos; (ii) desde a posse do FHC (1995) e (iii) desde o default da Argentina, em 2001. Para desespero de algumas teorias que ligam diretamente qualidade da política econômica ao desempenho da economia, o crescimento brasileiro em todos os três períodos foi igual ou pior do que o da Argentina. O Chile foi melhor que os dois na maior parte do tempo e a Venezuela, outro caso de desastre teórico na condução da economia, pior. Por outro lado, a variância do crescimento de Brasil e Chile ao longo do tempo é claramente menor que de Argentina e Venezuela, e talvez aí entre algum elemento de qualidade de política econômica (supondo que é preferível, do ponto de vista da qualidade de vida da população, uma trajetória com menos vales e picos).

Crescimento do PIB é, claro, apenas uma dimensão de um fenômeno muito complexo, mas nunca deixou de ser o melhor parâmetro que pode levar a uma melhora na vida das pessoas, o tal desenvolvimento. Para não ficar só nesse dado, fiz alguns outros gráficos comparando os PIBs per capita:

1. PIB per capita em dólares constantes de 2005, ajustado pela paridade do poder de compra.


Subversão 1: o Brasil, nesses termos, é mais pobre que Argentina, Chile e Venezuela. 
Subversão 2: em qualquer dos períodos, a Argentina cresceu mais o PIB per capita do que o Brasil.
Não-subversão 1: o Chile é o caso de sucesso, só não à frente na recuperação da Argentina da crise de 2001 (que se deu partindo de uma base já debilitada).
Não-subversão 2: a Venezuela, apesar de partindo (em 1980) do maior nível de riqueza, foi ultrapassada por Argentina e Chile e, mantidas as trajetórias, logo se igualará ao Brasil.

2. PIB per capita em dólares correntes, sem ajuste





Por esses dados, o Brasil se iguala ao Chile como caso de sucesso nos últimos 30 anos, mas a manutenção dessa conclusão depende do câmbio US$/R$ não estar supervalorizado e tendendo a um ajuste nos próximos anos. Aqui o desempenho da Argentina é bem menos brilhante, também por conta do câmbio - claramente o choque nos termos de troca com a alta de commodities desde 2002 foi bem menos generoso com a Argentina do que com os outros três países da amostra.

Essa é uma análise, como disse acima, só de uma (ainda que muito importante) dimensão. Tantas outras poderiam ser colocadas - para ficar só no campo econômico, distribuição de renda, IDH, etc, mas vou deixar isso para um post no futuro indeterminado. Extrapolar diretamente que o crescimento do PIB leva a uma melhora direta na vida da maioria da população de um determinado país é errado em muitos casos (ainda que seja uma heurística razoavelmente robusta), e por isso essa não deve ser a única medida da qualidade da política econômica implementada. 

Dito isso, olhando esses números é difícil não coçar a cabeça e questionar ao menos um pouco os estereótipos do que é "certo" ou "errado" em decisões de política econômica. Não me entendam mal: nem de longe eu apoio o que tem sido feito na Argentina, e o que sobrou da minha educação econômica ortodoxa ainda é o bastante para me dizer que ou o país poderia estar bem melhor caso não fosse tão caótico, ou que vai, no futuro, piorar de onde está hoje. Porém, o que a frieza dos dados diz é que, quaisquer que sejam as diferenças entre o que se fez de cada lado do rio Iguaçu nas últimas décadas, o resultado foi crescimento maior do lado de lá. Os "desenvolvimentistas" adoram citar esse fato para chegar ao non sequitur de que seria melhor que o Brasil fizesse algo parecido com o que se faz a partir da Casa Rosada; eu prefiro refletir sobre o que poderíamos fazer melhor por aqui (muita coisa aparentemente óbvia e consensual) e quais são os nossos limites potenciais (não poucos). 

Uma outra conclusão interessante desses dados, na linha de porque os países se dão mal, é: não faça como a Venezuela. Nos dados tratados com câmbio fixo PPP (creio que qualquer coisa corrigida com o câmbio corrente de lá é superestimada, dado o descolamento entre o câmbio oficial para o que a maioria da população precisa pagar quando precisa de moeda estrangeira), o PIB per capita do país é quase igual ao de 30 anos atrás e em trajetória de queda nominal desde 2007, mesmo com toda a ajuda do preço do petróleo. Qualitativamente e ideologicamente, o que a Argentina faz aproxima mais o país ao que levou a Venezuela à condição de anti-exemplo, um bom motivo para, dado o mesmo resultado passado, preferir o jeito brasileiro de tocar a economia.

Para finalizar: outro grande acerto em nome de livro foi do William Easterly, que qualificou a busca por crescimento como "elusiva" - impossível não concordar olhando para histórias e trajetórias tão diferentes que levaram, por essa medida, aos mesmos resultados.

P.S. Alguém que já tenha lido o novo Acemoglu / Robinson consegue adiantar o que eles dizem do caso da Argentina?

P.P.S. Um muito obrigado ao Fabio Arranhaponte por provocar este post.

28 comentários:

Dionísio disse...

Excelente análise. Muito instigante mesmo. Creio que na América Latina mais que em qualquer outro lugar já se devia saber há tempos que receitas simples e quadradas não levam ao desenvolvimento.

Ficamos agora indagando as causas. Os desafios e particularidades de cada país aparecem as vezes claramente no gráfico (o déficit energético brasileiro e seu alto endividamento, o petróleo de Argentina e Venezuela, os cenários políticos em mutação). Há o suficiente nesse post para fazer um livro, tenho certeza.

PS: senti falta do México, seria interessante ver um pais que foi de latinoamericano para norteamericano

Anônimo disse...

Indo mais fundos nos dados estranho ao instinto: Cuba em relação aos pares no Caribe.
Será que nem foi tão ruim? Ou será que o resto também não conseguiu acertar nada?

Maradona

Drunkeynesian disse...

O livro do William Easterly que eu mencionei no post trata de muitos desses temas e é bastante acessível, recomendo fortemente.

Não coloquei México pra não complicar ainda mais a análise (e o Arranhaponte só tinha citado Brasil, Argentina e Chile, a Venezuela foi de brinde para dar o exemplo ruim).

Drunkeynesian disse...

Esse comentário chegou por e-mail e não apareceu aqui, mas é muito bom pra passar em branco:

Indo mais fundos nos dados estranho ao instinto: Cuba em relação aos pares no Caribe.
Será que nem foi tão ruim? Ou será que o resto também não conseguiu acertar nada?

Maradona


É sabido que Cuba tem IDH absolutamente impressionante para a pindaíba que é o país, mas progresso material não é a praia deles. Acho que é até difícil analisar, até onde sei eles não reportam estatísticas macro pra esses órgãos multilaterais e o que se tem de lá são estimativas não tão precisas. Sobrando tempo, dou uma olhada.

F. Arranhaponte disse...

Caro, honradíssimo por ter sido o provocador. Superlegal o post. Subescrevo inteiramente (não que eu tivesse capacidade de escrevê-lo). Abração!

Drunkeynesian disse...

Opa, claro que teria - é só questão da transpiração.
Abraço!

Radical disse...

Grande post, só senti falta de uma comparação entre IDHs e Genis ao longo deste período. PIB é bom mas não alimenta todo mundo, né?

Drunkeynesian disse...

Exato, mas não quis misturar aqui... fica pra fila de posts futuros.

André disse...

Esse post me lembrou de um estudo comparando as previsões e recomendações do FMI para a Argentina com os resultados da economia. Para mostrar que havia um viés nos modelos do FMI. Todo ano eles diziam que a Argentina ia desacelerar, que estavam fazendo tudo errado, que era uma bolha, que vinha uma crisa no horizonte. E o crescimento do PIB seguiu ignorando a teoria.

Drunkeynesian disse...

Não conhecia esse estudo, mas parece bom... achando, põe o link aqui!

Dionísio disse...

Drunk, gostaria de saber quais fontes e ferramentas você usa pra fazer esse tipo de post.

Drunkeynesian disse...

Os gráficos e tabelas fiz no Excel; os dados vieram todos da base do Banco Mundial: http://databank.worldbank.org/data/home.aspx

Leo Monasterio disse...

Cara, estou sem tempo nenhum até o final de abril, mas nao resisto a dois pontos:
- No ultimo journal of economic history tem um texto muito bom mesmo chamado "the road not taken" sobre cuba.Eles estimam o PIB per capita ppp para a primeira metade do século XX. Em suma: Cuba era um país de renda média alta em 1952, com indicadores sociais bem bons mesmo. Os resultados revolucionarios sao bem muquiranas, mesmo comparados com sei lá.. costa rica.
-Nao será que tem mutreta nos dados da Argentina?
Abracos,
Leo.

Gian disse...

A título de curiosidade, estão computados como os valores do PIB argentino dados oficiais ou organismos independentes? Haveria a possibilidade da tão falada imprecisão das estimativas de inflação distorcer sensivelmente?

Daniel V. disse...

Exato Leonardo,
é complicado trabalhar c/ dados de lá pois em moeda doméstica o deflator do PIB é subestimado e em USD surgem varios problemas com o câmbio semi-fixo

Daniel V. disse...

Ou seja, provavelmente o resultado "real" da Argentina foi ainda pior do que o computado no GDP em USD

Drunkeynesian disse...

Leonardo, obrigado pela indicação, vou procurar o texto - já tinha ouvido que a revolução partiu de indicadores já bons em 59, mas nunca parei pra olhar os dados.

Quanto aos dados da Argentina (também vale pro Gian): são da base do Banco Mundial, que por sua vez recebe dos órgãos oficiais argentinos. Quando a The Economist decidiu parar de publicar dados oficiais da Argentina (http://www.economist.com/node/21548229), o problema era com a inflação, não chegaram a citar alguma desconfiança específica com os dados de atividade - e eu também não lembro de nenhum economista independente do governo apontar alguma diferença entre as estimativas de PIB que faz e o que o governo publica. Há algum tempo li algo falando dos problemas com o deflator do PIB, mas, de novo, não vi ninguém apontando que os dados de crescimento real não são críveis - se acharem algo dizendo o contrário, coloquem aqui, por favor. Pensando um pouco, se a diferença entre o deflator do PIB usado e a inflação real fosse tão grande quanto o gap entre a inflação do INDEC e a medida por outros observadores, o PIB real "corrigido" dos últimos anos implicaria que o país está numa gigante recessão, o que não parece ser o caso olhando para o anedótico e alguns outros dados.

Daniel, o câmbio semi-fixo aparentemente faz com que o peso fique artificialmente subvalorizado - creio que um câmbio de mercado melhoraria os dados em USD correntes. Em vários estudos de PPP que vi o peso argentino sempre aparece entre as moedas mais subvalorizadas (mas isso muda rápido na medida em que a inflação vai acelerando e o câmbio fixado pelo BC é mais ou menos o mesmo há algum tempo).

Leo Monasterio disse...

O texto ungated sobre cuba está aqui:
http://econweb.umd.edu/~davis/eventpapers/CUBA.pdf

Drunkeynesian disse...

Valeu! Vou ler com cuidado.

Anônimo disse...

Você ignorou nos últimos parágrafos que o Brasil já experimentou por DéCaDaS o modelo argentino. Só nos anos 90 a palhaçada acabou. Se ainda há desenvolvimentista que quer "experimentar" essas LoUcUrAs, deveriam colocar uma camisa de força nesses sujeitos o mais rapidamente possível. Nem o Mantega acredita mais nessas coisas.

Anônimo disse...

Drunkeynesian, apenas fazendo um exercício hipotético.

Um imaginário país A tem carga tributária de 29% do PIB, taxa de investimento de 24%, juros reais negativos e está na 113a posição no ranking mundial de facilidade de negócios.

Um outro imaginário país B tem carga tributária de 36% do PIB, taxa de investimento de 18%, os maiores juros reais do mundo, e está na 126a posição no mesmo ranking acima.

Para completar, a força de trabalho do país B tem em media 2 anos a menos de escolaridade que a do país A.

Seria alguma surpresa (ou subversão) se este imaginário país A estivesse crescendo mais rapidamente que o país B?

Drunkeynesian disse...

Anon, o ponto é válido - de fato só de uns 18 anos pra cá tem uma diferença nítida nas trajetórias (e, ainda assim, por algum tempo a Argentina também testou um modelo de âncora cambial com o câmbio supervalorizado). Quanto aos desenvolvimentistas, não faz muito tempo eu vi um texto do Bresser em algum jornal elogiando o "modelo argentino". Tem louco pra tudo, como dizem.

Anon, ótimos pontos - esses dados provavelmente estão mais perto do que determina taxa de crescimento do que uma suposta qualidade da política econômica, e não há surpresa - desde que eu esteja certo em imaginar que "A" é Argentina. Surpresa é pensar que, mesmo com toda loucura e arbitrariedade computadas, o ambiente pra fazer negócios (ou incentivos ao "animal spirit") é melhor lá do que aqui. Como costumo dizer, o empreendedor brasileiro é, antes de tudo, um forte - e melhorar isso está entre as coisas óbvias e consensuais que mencionei acima.

Anônimo disse...

Ainda não li o "Why Nations Fail" (está na fila).

Mas ouvindo uma entrevista do Acemoglu, parece que a tese deles é que a Argentina enriqueceu utilizando seus recursos naturais, mas suas institutions não eram desenvolvidas o suficiente.

E não-desenvolvimento das instituições argentinas custou, no século XX, toda a riqueza que possuiam anteriormente.

Cleuson disse...

Uma dúvida: De onde vieram esses dados? Do "confiabilíssimo" instituto argentino?

Como diria Millor:
As estatísticas confirmam: as estatísticas não servem pra nada.

Drunkeynesian disse...

Pé, falei sobre as fontes no comentário de ontem às 18h35.

Bem ou mal, sem estatística economia vira puro achismo, com uma fração ínfima do charme da filosofia.

fábio pesavento disse...

Prezados estou no 2 capítulo do Why Nations Fail" recomendo muito!!! Vale falar com o Kang sobre o paper dele sobre Cuba que ele vai apresentar na Africa do Sul (WEHC) e já apresentou na ppge da ufrgs semana passada...

Alex disse...

D:

Por outros motivos estava fuçando os dados de PIB argentino dos últimos anos e comparando com os números de geração de energia elétrica.

Se formos tomar estes números ao pé da letra, a Argentina produziu 20% a mais de PIB por unidade de energia gerada do que em 2004.

É impossível? Não sei, mas - se já tinha dúvidas sobre a confiabilidade dos dados argentinos - todos meus tentáculos estão agitados com este achado...

Abs

Alex

Drunkeynesian disse...

Opa, põe lá no Mão Visível!

Seria interessante também ver como isso (produto por unidade de energia) evoluiu nesse período para outros países onde não há desconfiança sobre os dados. De qualquer forma, não tem, mesmo, como não ter os dois pés atrás com qualquer coisa divulgada por lá.