terça-feira, 20 de setembro de 2011

Rogue Traders, Delta One e outros espécimes exóticos

Já mandei meu CV para uma porção de bancos...
Na semana passada, um leitor pediu para que eu fizesse um texto explicando em termos não-alienígenas um pouco da história do UBS e sua perda milionária em uma das mesas de trading. Vejamos se faço juz ao desafio:

O caso do UBS - um operador da equipe de Delta One (mais abaixo) teria perdido mais de US$ 2 bilhões do capital do banco - entra para a infame lista de maiores perdas por rogue trading na história. Não achei a origem exata da expressão (rogue, para o Português, geralmente é traduzido como fraudulento), mas creio que foi criada para descrever as atividades de Nick Leeson, do banco britânico Barings. Leeson ficou famoso por esconder, durante anos, perdas na operação de derivativos do Barings em Cingapura (enquanto isso, a divisão asiática do banco mostrava resultados fictícios espetaculares e o prestígio e a influência dele cresceram). Após o terremoto de Kobe, no início de 1995, prejuízos com futuros e opções de títulos da dívida japonesa e do índice Nikkei tornaram a situação insustentável, o banco reportou um prejuízo de mais de US$ 1 bilhão (que o levou a ser comprado pelo holandês ING pela quantia simbólica de uma libra esterlina) e Leeson foi preso em Frankfurt ,enquanto tentava fugir. Rogue Trader virou o título da biografia best seller de Nick Leeson e do filme (bastante assistível) inspirado na história, com Ewan "Obi-Wan Kenobi" McGregor no papel principal.

A história do Barings virou caso de estudo em qualquer curso de finanças e risco. Os controles do Barings eram fracos, e Leeson era responsável tanto pela operação (front office) quanto pelo controle e liquidação (back office). A matriz do banco, em Londres, mostrava-se pouco preocupada com os detalhes de uma operação que começou pequena e, em pouco tempo, tornou-se uma das principais fontes de "lucro" para o banco. Essas e outras nuances foram, em teoria, aprendidas e incorporadas aos controles de risco e compliance dos bancos, e passaria a ser mais difícil (ou praticamente impossível) para uma pessoa sozinha fazer um grande estrago.

Acontece que os casos de rogue traders com perdas de bilhões seguiram acontecendo, à razão aproximada de um a cada par de anos, e a culpa, na maioria dos episódios, seguiu sendo atribuída a uma pessoa: "o" rogue trader, que, em teoria, age sozinho, fraudando os sistemas em busca de mais alavancagem e potenciais ganhos. Daí, consigo extrair duas possibilidades:

1 - Os rogue traders estão sempre à frente dos sistemas de controle e risco, ainda que estes tenham evoluído brutalmente nesses anos. Os casos só são maiores e ganham mais publicidade porque os volumes operados cresceram, junto com os potenciais estragos. Ou, de forma mais abstrata e parafraseando um político francês, não faz sentido basear um sistema em regras mecânicas e esquecer da natureza humana por trás do que o alimenta;

2 - Com sistemas de risco rodados por áreas independentes da operação, relatórios praticamente em tempo real e inúmeras redundâncias e checagens, burlá-los depende de conivência (ou incompetência) de diversas pessoas. Quando as perdas aparecem, acha-se um bode expiatório e a vida segue para os demais responsáveis. Ou, nos casos que não ficam conhecidos, os eventuais ganhos da maior exposição a risco são apropriados e as fraudes encobertas, enquanto a estratégia funciona e garante um bônus gordo para os envolvidos.

O que realmente aconteceu no UBS (e no Société Générale em 2008, no maior rombo da história - 5 bilhões de euros atribuídos a Jérôme Kerviel) dificilmente virá a público, já que os bancos não têm o menor interesse em expor suas fragilidades ou fraudes consentidas por altos executivos. Pela minha experiência (e de muita gente que já trabalhou em mesa de operações), hoje em dia é praticamente impossível esconder, sozinho, perdas dessa escala (ou muito menores, na verdade) por mais de poucas horas sem despertar suspeita. Talvez esses casos sejam como uma queda de avião: o resultado trágico de uma sequência de erros individualmente inevitáveis; talvez sejam mais uma face do risco moral que permeia o mercado financeiro. Eu acredito mais na segunda hipótese; o leitor pode tirar suas próprias conclusões.

Mais algumas boas leituras sobre o tema:

- A notícia da prisão, na BBC;

- Barry Ritholtz explora melhor alguns dos pontos que levantei acima, e cita outras tantas opiniões;

- Os detalhes das operações no UBS, no Financial Times.
_________________________________________________________

Quem aguentou acordado até agora pode ler sobre o Delta One. Derivativos têm esse nome porque seus preços derivam de um ativo - futuros de trigo derivam do preço do trigo físico, futuros de índices de ações derivam do preço das ações que compõe o índice, e assim por diante. Delta é o termo técnico para a relação entre a variação do preço de um derivativo e seu ativo correspondente: assim, o preço de um derivativo com delta 0,5 oscila, digamos, R$ 0,50 para cada variação de R$ 1,00 no preço do ativo. Os produtos chamados Delta One, como é possível imaginar, têm delta muito próximo de um, ou seja, são cópias quase perfeitas de seus ativos. Exemplos: futuros de índices de ações e ETFs baseados nesses índices são "delta one" do índice a vista (o Ibovespa futuro negociado na BM&F e o BOVA11 acompanham quase centavo a centavo as oscilações do Ibovespa).

Acontece que, na prática, ao longo do tempo o "delta one" pode se desviar do 1 teórico - os instrumentos, ainda que feitos para serem idênticos, têm diferenças de construção, liquidez, etc. A função de uma mesa de delta one é dar liquidez para esses produtos (oferecê-los para clientes) e arbitrar (via modelos estatísticos - daí a demanda por PhDs e afins) as possíveis oportunidades (por construção, o delta tende a 1, a 0,95 ou a 1,05 há um possível ganho de arbitragem). Por unidade, os potenciais ganhos dessa arbitragem costumam ser pequenos (raramente os desvios do delta 1 teórico são grandes), daí a necessidade de se operar volumes colossais para que o banco possa ter algum ganho significativo. Esses grandes volumes serviram, em tese, para diluir as fraudes no UBS e no Société Générale (Kerviel também trabalhava nessa divisão quando entrou para a história).

Se não ficou claro, não se preocupe, vive-se muito bem sem esses rodapés do mundo das finanças.

9 comentários:

Veiga disse...

Long Live LTCM

iconoclastas disse...

sem dúvida a 2ª, só uma quadrilha para malocar o P&L.

Ticão disse...

Acho que consegui entender. Grato.

M. disse...

Acompanho o blog há um tempo,excelente blog. Mas se possível gostaria que me tirasse duas dúvidas.
1° Você trabalha 'operando' ou 'analisando'?
2° Estou cursando economia e pretendo trabalhar no mercado financeiro, pretendo seguir direto para mestrado e doutorado, isso seria bom ou ruim? Sendo Doutor em Economia teria mais espaço no mercado?

Drunkeynesian disse...

Obrigado M.

1. Opero (mas já fiz análise também).

2. Aqui no Brasil, mestrado e doutorado fazem bem pouca diferença para trading e alguma se você fizer estratégia, análise econômica ou de ações (o mesmo vale para o CFA). Se você quer ser economista chefe de algum banco ou algo do tipo, aí mestrado / doutorado é quase mandatório (raros os casos que não tem).

Drunkeynesian disse...

Ah, para trading, creio que os fundos estrangeiros demandam mais PhDs em física, matemática, etc, do que em economia. E MBAs acabam indo trabalhar em investment banking, para ficar no estereótipo.

Jorge Browne Maia disse...

Risco moral pra cá, moral hazard pra lá e, em que pesem as citações no blog do Ritholtz, tudo vai muito bem para a turma.

No livro sobre a crise o Roubini estava escandalizado com isso. O que me lembrou do maldito complexo de vira-lata que alguns deslumbrados ainda tem: no quesito impunidade estamos longe da singularidade...

Drunkeynesian disse...

Sim, é verdade. A plutocracia ainda domina os tribunais e congressos.

Andre disse...

Muito bom este tipo de post didático/historico sobre o mercado financeiro.

Abs