sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Tentando entender a crise na Europa (parte 3)

Continuação da segunda parte.

6. Tudo isso observado, ainda acredito (com grande risco de me provar errado, claro) que os políticos alemães, com as opções que têm em mãos, acabarão deixando de lado a ortodoxia irrestrita do velho Bundesbank e aprovando um plano de monetização de dívida parecido com o que fizeram, sob o rótulo mais palatável de “afrouxamento quantitativo”, Japão, EUA e Reino Unido (a tentativa atual é de fazer isso via o fundo de establização, EFSF, mas creio que esse mecanismo, que envolve alavancagem e emissão de dívida continental, é complexo e pouco eficiente comparado ao que pode fazer um banco central em pouco tempo). Isso poderia levar de volta os juros dos países mais problemáticos (os PIIGS, todos negociando taxas acima de 6% para os títulos de dez anos) para níveis mais baixos e quebrar o ciclo vicioso que descrevi anteriormente. O primeiro efeito colateral, talvez não tão indesejado, seria alguma desvalorização no euro, nada que ponha a moeda em risco de colapso (a julgar pelos outros exemplos). Afastados os riscos de calotes e quebras generalizadas e com uma nova rodada de estímulo monetário, a Europa poderia voltar a pensar em seus problemas estruturais (ou mesmo tentar acreditar que o passar do tempo vai resolvê-los, como propôs o Kaletsky). Se isso acontecer, ficará em segundo plano outra pergunta extremamente relevante: qual o real custo de aumentar radicalmente a base monetária?

7. O velho Keynes, no clássico As Consequências Econômicas da Paz, escreveu (na tradução de Sérgio Bath para a edição da UnB):

Atribui-se a Lênin a declaração de que a melhor maneira de destruir o sistema capitalista é destruindo a moeda. Com um processo contínuo de inflação os governos podem confiscar uma parte importante da riqueza dos seus cidadãos, secreta e furtivamente. Com esse método eles não só confiscam, mas o fazem arbitrariamente; é um processo que empobrece a muitos mas na verdade enriquece uns poucos. Esse deslocamento arbitrário de riqueza fere não só a segurança mas a confiança na equidade da distribuição de renda. Aqueles a quem o sistema traz vantagens além do que merecem, e mesmo do que esperam ou desejam, passam a ser “aproveitadores” – objeto de ódio da burguesia, que a inflação empobreceu, não menos do que o proletariado. À medida que a inflação se desenvolve, e o valor da moeda flutua de mês a mês, as relações permanentes entre credores e devedores, fundamento do capitalismo, se desorganizam até quase perderem o sentido. E o proceso de aquisição de valor degenera em uma loteria de azar. 
Não há dúvida de que Lênin tinha razão. Não há meio mais seguro e mais sutil de subverter a base da sociedade do que corromper a sua moeda – processo que empenha todas as forças ocultas da economia na sua destruição, de modo tal que só uma pessoa em cada milhão consegue diagnosticar. 

A citação de Lênin é supostamente apócrifa (ver aqui), mas o restante é uma descrição quase profética do que ocorreria na Alemanha alguns anos depois (o livro é de 1919) e do que, supostamente, assusta tanto os alemães até hoje. O porém é que o mundo de hoje não tem a menor cara de inflacionário, com o crescimento rodando abaixo do potencial na maior parte dos países, uma massa enorme de desempregados e aparente excesso de capacidade instalada (além de muito mais estabilidade política do que no período entre guerras). Além disso, as últimas experiências de monetização de dívida (as três citadas acima) não desencadearam processos inflacionários (ainda, dirão alguns), negando a idéia que imprimir dinheiro é caminho certo para hiperinflação: parece ser, sim, um passo necessário, mas não suficiente.

8. O Japão é o caso mais antigo de aplicação de “afrouxamento quantitativo”, e talvez sirva como mapa do que pode ocorrer com o EUA, Reino Unido e Zona do Euro daqui para frente. O Banco do Japão pratica juros zero desde 1999 e anunciou pela primeira vez um programa de compra de títulos em 2001, tentando combater um cenário de risco de deflação que persiste até hoje. Desde o estouro da bolha de crédito (com reflexos no Nikkei e no mercado imobiliário), em 1990, o desempenho da economia e das empresas tem sido, no melhor dos casos, medíocre. Nesse tempo, a dívida bruta do país passou de 68% para 245% do PIB. Apesar disso, o Japão segue sendo rico (com desemprego baixo / alta renda per capita), e, paradoxalmente, os juros longos seguem em patamares muito baixos (menos de 1%, para títulos de 10 anos) e o iene bastante valorizado.

No caso japonês, o equilíbrio depende de uma grande capacidade de gerar superávits externos, que afasta qualquer possibilidade de crise cambial e seus efeitos (muito conhecidos por aqui). Além disso, é necessário que os poupadores japoneses mantenham o dinheiro no país, e que a sociedade tenha aprendido a viver com baixa mobilidade social e total simbiose entre empresas e bancos com o governo. Convém também não pensar muito no futuro, sobretudo nas próximas gerações. Não há a menor perspectiva de que a situação fiscal do país melhore ou que as empresas sejam capazes de voltar ao lucro, e os cidadãos parecem estar razoavelmente bem com isso.

 Sem pensar muito, dá para imaginar que esse modelo seria benvindo em muitos países da Europa: enriquecemos, tivemos poucos filhos e podemos nos dedicar a uma decadência lenta e razoavelmente opulenta. A Itália, por exemplo, tem uma demografia muito parecida com a do Japão: alta expectativa de vida (77 anos para homens, 83 para mulheres), baixa fertilidade (1,4 filho por mulher), população decrescente (deve cair até 2015) e envelhecida (idade média da população de 42 anos, só mais baixa no mundo que a do Japão). Diferenças regionais à parte, imagino que, se perguntado, o italiano médio escolheria “progredir de vez e virar japonês”, como já profetizava o Ultraje a Rigor. Entretanto, essa decisão não é possível, com a limitação evidente do país nas contas externas. A Itália tem conta corrente deficitária desde 1999, com tendência de mais deterioração. A garantia de moeda estável e pouco risco inflacionário, nessa situação, depende da permanência do país na Zona do Euro; uma nova lira (que equilibraria a conta corrente) provavelmente seria, periodicamente, desvalorizada e atacada, o que estragaria o sonho do dolce far niente.

O agregado dos países do euro não tem grandes problemas externos – a Alemanha e a Holanda, muito superavitárias, compensam os grandes déficits de Itália, Espanha e companhia, grosso modo (neste ano o déficit em conta corrente da zona do euro deve ser algo como 0,5% do PIB). Portanto, uma decisão eventual de monetizar dívida e chutar de vez a lata para longe (assumindo que em algum momento no futuro a monetização implicará em custos) teria que ser algo coordenado, com uma conciliação de interesses – os países “ricos” se convencendo de que vale a pena financiar a unidade do continente (pelo menos durante o tempo para as economias mais frágeis se reerguerem e desmontarem a rede de privilégios que quebrou os respectivos tesouros nacionais). Curiosamente esse é o mesmo tipo de pensamento que levou, em outras circunstâncias, à criação da União Européia; seria uma questão de pensar se, após o ocorrido nas últimas décadas, ainda deve-se atribuir um valor alto à estabilidade. A partir daí, a nova questão a ser respondida é quanto isso custará para o crescimento futuro do continente, ou o quanto é possível aceitar a idéia que crescimento pode deixar de ser, por um bom tempo, a grande prioridade de política econômica (e se é possível promover alguma justiça social sem crescimento). Essa, porém, não vou me arriscar a responder, por enquanto (até porque este texto já está muito maior do que o razoável).

O grande condicional para esse item todo é realmente ainda estarmos longe do fim de um longo período deflacionário. Se, por qualquer motivo (há vários bons no ar), a inflação voltar no mundo desenvolvido, a agonia dos credores deixa de ser diluída por muitos anos e passa a ser urgente, e os bancos centrais e governos terão um grande fator adicional de preocupação. Não seria bonito, definitivamente.

4 comentários:

Anônimo disse...

Alem da diferença na conta corrente do balanço de pagamentos existe outra diferença fundamental entre os PIIGS e o Japão, o ultimo eh industrializado de fato, enquanto os outros só produzem azeite. Conseguirão eles manter a renda per capita que tem hoje se ficarem no euro? Acho que não. O avanço da Ásia vai ser, em parte, as custas desses países sem competitividade em nada. (desculpe pelos erros ortográficos, estou num tablet recem comprado e não sei usar direito o teclado virtual)

JGould disse...

"(até porque este texto já está muito maior do que o razoável)", discordo! Um tríptico para pendurar na parede. Seria ótimo ver algo assim sobre o Tio Sam, as consequências da desalavancagem, o mercado de "real estate" e etc.
Vamos supor que, por um momento o Krugman se torne o presidente do BCE, com o aval dos "chucrutes" e tudo o mais, ainda assim, persistem dúvidas no longo prazo. Ah! o futuro! o que a posteridade já fez por mim? A pergunta é:
Como podem conviver países com produtividade e contas fiscais do Zimbabwe e moeda da Alemanha?

abs

Drunkeynesian disse...

Obrigado JGould... de qualqer maneira, só falta mais uma parte.

O longo prazo de fato é muito, muito, nebuloso; ainda mais para quem acredita (como eu e muito mais gente) que o capitalismo está perdendo o dinamismo. Por outro lado, até hoje todas as tentativas de tentar declarar a morte do capitalismo foram frustradas por algo inesperado, talvez aí esteja alguma esperança (esperar pelo inesperado... fácil...).

Jorge Browne disse...

A série de textos esta excelente com certeza. Até eu estou conseguindo entender.

No longo prazo o capitalismo eu não sei, mas todos nós estaremos mortos...