quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Tentando entender a crise na Europa (parte 2)

Continuação da primeira parte que postei ontem.

3. Para boa parte da Europa, portanto, não existe a alternativa de amenizar o problema da dívida com crescimento (grow out of the debt, como dizem os anglófonos). Simplesmente não há crescimento: muitas economias não são competitivas com o câmbio valorizado e acabou a era da alavancagem, que, por muito tempo, amenizou ou disfarçou essa condição (para não falar nas fraudes em contas nacionais). Resta atacar diretamente a dívida, com alguma das alternativas:

 i) Impedir ou reduzir o crescimento da dívida, ou seja, diminuir os futuros déficits fiscais, aumentando impostos ou cortando gastos. O problema dessa alternativa, além da dificuldade política de atacar privilégios passados, é prejudicar, no curto prazo, ainda mais uma atividade econômica já bastante debilitada. Não parece razoável, por exemplo, dizer aos espanhóis que uma economia com quase ¼ da força de trabalho desempregada vai ficar ainda pior antes de, possivelmente, melhorar;

 ii) Reduzir, via renegociação (ou calote), o estoque da dívida existente. Essa é a alternativa tentada para a Grécia; provavelmente não poderia ser aplicada para dívida maiores (a Itália, por exemplo, é o terceiro maior emissor de títulos soberanos do mundo, só atrás dos EUA e do Japão) sem um amplo pacote de recapitalização dos bancos, seguradoras e fundos de pensão, que teriam que assumir as perdas nas suas carteiras de títulos. O calote, se não negociado, pode fazer também com que os países que escolham essa alternativa fiquem anos sem acesso a crédito no mercado internacional. Uma renegociação com a manutenção do país em questão na Zona do Euro parece relativamente factível; um calote unilateral certamente implicaria na volta para a respectiva moeda nacional (a alternativa a isso é pagar a dívida com novas emissões da moeda nacional, provavelmente bastante desvalorizada - o que, para os credores, teria consequências semelhantes às de um haircut);

 iii) O Banco Central Europeu seguir o exemplo do Fed e do Banco da Inglaterra (e do pioneiro Banco do Japão): ligue a impressora de dinheiro e seja feliz. Ambos compraram, com dinheiro novo, grandes volumes de dívida dos respectivos países, jogaram os juros longos para níveis baixíssimos e, até agora, parecem ter afastado o risco de calote. Mais sobre as consequências dessa alternativa aparentemente mágica em breve;

 iv) Completar o projeto de integração do continente com uma efetiva consolidação fiscal, tornando a dívida e a arrecadação únicas dentro da união monetária. Provavelmente encontraria forte resistência nos países com contas melhores (o tradicional argumento do alemão austero pagando a aposentadoria precoce do grego indolente) e, ainda que viabilizada politicamente, levaria muito tempo para ser implantado. A alternativa a isso que está sendo tentada é a alavancagem do fundo de estabilização europeu (EFSF), mas os detalhes ainda me parecem muito obscuros para que possa sair do papel em tempo hábil para conter a crise.

4. Monetizar dívida parece a opção menos dolorosa no presente, e com efeitos mais imediatos nos juros. No caso da Europa, porém, essa decisão não pode ser feita por cada país, já que há uma única autoridade monetária para os 17 membros da Zona do Euro. É preciso ou abandonar a moeda única (como descrevi acima) ou forçar o Banco Central Europeu a aumentar seu balanço. Hoje se critica muito o BCE por ter mantido, por muito tempo, uma política monetária que parecia adequada para a Alemanha, mas que era apertada demais para outros países. Porém, esse foi o acordo implícito na criação do euro: tomava-se emprestada a credibilidade de manutenção do valor da moeda conquistada pelo Bundesbank para que fossem resolvidos os crônicos problemas cambiais e de inflação de alguns países; em troca, estes se comprometiam a manter suas contas mais ou menos ajustadas e teriam um tempo para viabilizar suas economias com essa restrição fiscal e moeda valorizada (e, em muitos casos, a ajuda das transferências da União Européia). O tempo provou a dificuldade de hábitos antigos serem mudados, e o acúmulo de desequilíbrios que foram por anos sutilmente ignorados culminou na situação atual.

Se as outras alternativas que coloquei no item anterior parecem lentas ou penosas demais, por que o Banco Central Europeu ainda não resolveu seguir o exemplo de suas contrapartes do outro lado do Atlântico e do Canal da Mancha? Não sei a resposta precisa, mas ela parece passar necessariamente por outra pergunta: o que querem os alemães, que, com pouca dúvida, são o motor econômico e, em alguma medida, "autoridades morais" do continente?

5. Também não sei o que querem os alemães. Talvez o mesmo que boa parte dos cidadãos do mundo rico: manutenção do padrão de vida conquistado nos anos após a II Guerra, paz, estabilidade e, se possível, alguma perspectiva para as próximas gerações. O que parece ser particular a Alemanha é o que ela não quer: os contribuintes parecem não estar dispostos a aumentar mais as transferências de sua riqueza para os demais países da Europa (o que excluiria qualquer tentativa de união fiscal - o quanto dessa riqueza conquistada nos últimos anos é produto da União Européia é objeto de grande discussão) e não veem com bons olhos monetização de dívida, suposto reflexo distante do caos hiperinflacionário da República de Weimar (1921-1923). Isso é o que a mídia nos deixa entender; há algum tempo, perguntei para o Magno Karl, que mora em Berlim, qual impressão ele tem do proverbial “alemão médio”. Ele, gentilmente, me deu a seguinte resposta (anedótica e sucinta, claro, mas melhor do que a tentativa do Michael Lewis): 

Só me baseando no que vejo e escuto por aqui, a ajuda aos gregos é bem impopular. Aliás, não só aos gregos, mas a qualquer país que seja visto – com justiça ou não – como mais gastador. Os jornais são mestres em comparar dados como a idade das aposentadorias, o valor médio das aposentadorias, o salário do funcionalismo público, enfim… coisas que mostrem que a Alemanha não deveria ajudar países que não são tão disciplinados assim. 
Eu acho que a megainflação jamais foi esquecida, mas acho que não é algo que amedronte a maioria das pessoas (que jamais viveram com inflação alta). Ou talvez só esteja lá atrás na lista de medos prioritários. O que espanta é que a inflação não amedronte o bastante no Brasil, onde qualquer um com 25 ou 30 anos consegue lembrar da inflação do início dos anos 90. 
 Na média, olhando em volta, os alemães parecem mais ricos que os ingleses, por exemplo, só para comparar com outro país onde eu morei. O tamanho do mercado de produtos orgânicos, que em alguns casos custam 5 vezes mais do que os convencionais, foi uma das coisas que no início mais me impressionaram, e talvez seja um indicativo de prosperidade.
Apesar disso tudo, acho que é difícil avaliar a Alemanha a partir de Berlim. A impressão que se tem aqui é de uma cidade-ilha, cheia de jovens, estudantes, artistas e a burocracia. Aluguéis e salários são baixos em comparação com Frankfurt, Munique ou Hamburgo. O desemprego é bem maior do que a média nacional. Berlim parece um campus universitário, com boa parte da população recebendo benefícios do governo, produzindo arte ou estudando, e talvez planejando “crescer” daqui a alguns anos.

P.S. para o item 4. "O" Anonimo escreveu nos comentários:

A crítica à política monetária única é que por muitos anos era correta para a Alemanha, um país com demanda fortemente deprimida, mas os juros eram BAIXOS demais para a periferia, Espanha e Irlanda em particular, que sofreu com bolhas no setor imobiliário e inflação alta.

Eu tinha respondido:

Você tem razão, ficou ruim no texto: a política monetária passou a ser claramente apertada para a periferia só depois que as bolhas estouraram e o crescimento afundou. 
 Depois preciso olhar os dados de novo, mas o que tinha em mente é que a inflação na periferia, entre a criação do euro e 2007, foi mais baixa do que era com as dracmas e pesetas da vida, não? Creio que a dificuldade de estabilizar os preços estava mais na fragilidade do câmbio, problema que foi resolvido com o euro. 
 Quanto às bolhas, contribuiu muito a ideia de "convergência" e de fim do risco soberano, que fez desaparecer os spreads de crédito - não sei se isso deve-se totalmente à política monetária, tem muito também de um feedback loop do mercado acreditando muito na competência dos políticos em suavizar os ciclos e comprimindo a precificação de risco por conta disso (outra longa discussão).


Os tais dados da inflação nos PIGS (fonte: FMI):


Sobre formação de bolhas, aqui tem um texto introdutório bem sucinto do Edward Chancellor (existem outras tantas opiniões, desde Minsky até as mais recentes, com inspiração na geofísica).

6 comentários:

iconoclastas disse...

"o que querem os alemães, que, com pouca dúvida, são o motor econômico e, em alguma medida, "autoridades morais" do continente?"

é isso,né? acabei de levantar essa bola de forma muito ligeira.

Drunkeynesian disse...

Eu vi lá... acho que é isso, mesmo, também acreditava que o Super Mario ia ligar logo a impressora. A outra ideia, mais bruta, é acreditar na grande capacidade de políticos escolherem as piores alternativas; não seria a primeira vez na história.

O balanço de perdedores / ganhadores na história de monetizar dívida não me agrada nem um pouco, mas a essa altura as outras alternativas parecem todas piores.

Anônimo disse...

Alemanha motor econômico da Europa? Só se for pelo lado da oferta porque pelo lado da demanda ela foi o maior sugador de crescimento da Europa, com superávit colossal em relação aos demais países.

Drunkeynesian disse...

É a maior economia da Europa, não? E quem conseguiu segurar alguma perspectiva de crescimento durante a crise.

Quanto a "sugar" crescimento... é uma visão mercantilista, como se o melhor fosse sempre ter superávit externo. Se for pensar pro outro lado, um monte de outros países absorveu poupança externa por um tempo, e isso não é necessariamente ruim para a economia.

"O" Anonimo disse...

A críptica à política monetária única é que por muitos anos era correta para a Alemanha, um país com demanda fortemente deprimida, mas os juros eram BAIXOS demais para a periferia, Espanha e Irlanda em particular, que sofreu com bolhas no setor imobiliário e inflação alta.

Drunkeynesian disse...

Você tem razão, ficou ruim no texto: a política monetária passou a ser claramente apertada para a periferia só depois que as bolhas estouraram e o crescimento afundou.

Depois preciso olhar os dados de novo, mas o que tinha em mente é que a inflação na periferia, entre a criação do euro e 2007, foi mais baixa do que era com as dracmas e pesetas da vida, não? Creio que a dificuldade de estabilizar os preços estava mais na fragilidade do câmbio, problema que foi resolvido com o euro.

Quanto às bolhas, contribuiu muito a ideia de "convergência" e de fim do risco soberano, que fez desaparecer os spreads de crédito - não sei se isso deve-se totalmente à política monetária, tem muito também de um feedback loop do mercado acreditando muito na competência dos políticos em suavizar os ciclos e comprimindo a precificação de risco por conta disso (outra longa discussão).