Para quem acha que o Brasil é ruim hoje: há exatos 25 anos, dom Sarney era o
capo di tutti capi, a inflação rodava a 256% ao ano e o Ministro da Fazenda Dilson Funaro lançava mais um mirabolante plano heterodoxo de estabilização para o país. A história já foi contada e recontada centenas de vezes; aqui, compartilho com o leitor a divertida versão do jornalista Airton Seligman, publicada nos bons tempos da revista VIP, em dezembro de 2000.
A abolição do capitalismo
Se você não lembra de algo tão surrealista quanto aquele 15 de março de 1990, quando Zélia e cia. Surgiram na TV, olheiras lá embaixo, tentando explicar que era legal confiscar seu dinheiro, é porque você era muito jovem em 1986. Naquele ano, o presidente da República chamou os empresários de “aliados de Bakunin”, qualquer cidadão mandava fechar supermercados e o governo invadia fazendas para sequestrar bois. Eu, seu pai, o Brizola e o diabo a quatro embarcavamos todos, naquele 28 de fevereiro de 1986, nessa delirante viagem. Chegamos a acreditar que os problemas do nosso capitalismo perneta, que vivia às turras com sua amada inflação, sumiriam do mapa com um simples autógrafo do presidente Sarney e algumas idéias mirabolantes de meia dúzia de caras de quem ninguém nunca tinha ouvido falar, tutelados por um ministro dono de fábrica de brinquedos e uma economista portuguesa. Foi um grande barato: o Plano Cruzado nos fez provar a deliciosa alucinação do congelamento de preços.
A idéia da rapaziada era passar o serrote na inflação, que ameaçava bater nos 500% ao ano. Heureca: vamos proibir a remarcação! Sem remarcação, não haveria inflação! Sem inflação, acabaria a correção monetária – que levava o empresariado a jogar tudo na especulação financeira e não na criação de empregos. Claro, sem inflação, pra que corrigir tarifas e salários? Vamos congelá-los também, assim o consumo não explode e fica tudo como dantes. Bem, congelar salários ia ser um bafafá, e os caras nos deram 8% de abono, com a promessa de que se a inflação passasse de 20% teríamos um gatilho (eu juro que ouvi “quando passasse”...). Feito: o país estava recauchutado. Peraí: por que pagar por uma maçã, por exemplo, 1000 cruzeiros, a moeda da época? Simples: arranca os três zeros daí, afinal são frutos de anos de inflação e desvalorizações. E muda o nome do dinheiro pra cruzado, a moeda do Império. Uau!
Lá fomos nós rumo ao nirvana, drogados de arrogância e esperança. Se alguém encontrasse supermercado remarcando, mandava fechar. O povo era um exército de fiscais do Sarney, de button e tudo. Não eu, que nunca fui dado a deduragem, mas vi muita velhinha de dedo em riste, na falta de outra coisa. Era só ligar pra Sunab e crau nos inimigos do povo. Um curitibano fechou um mercadão dos grandes. Você saía à rua armado de tabelas até os dentes: tabela de preços, de conversão da moeda, do táxi... Os velhinho saíam com a tabela da aposentadoria. Eu saía com a das cervejas e o trecho dizendo que o cruzeiro se desvalorizava 0,45% ao dia em relação ao cruzado. Tinha um monte de pré-datados na praça e valeriam uma miséria quando descontados. Seria a minha vingança. O país vivia cheio de monstros poderosos, de nomes estranhos: Copon, Seplan, Procon, Cinab, CIP e... ah, o dragão da inflação. Esse, tínhamos de abater. E a gente estava conseguindo! Nas duas primeiras semanas do plano, houve a primeira deflação da história tupi. Mas o governo insistia para a gente não sair torrando grana, agora que ela valeria a mesma coisa no mês que vem. Mas quem resistiria, com 8% a mais no holerite? Eu, fora. Recém-formado, com um Fiat 147 que só faltava bater palmas, não saía das lojas de discos, livros e dos balcões das companhias aéreas. Fazia carnê pra tudo, afinal não apenas pagaria parcelas iguais, como poderiam ser menores que a entrada, se a deflação continuasse. Sem contar que o preço, cá entre nós, estava lá embaixo, já que o governo lançara o plano de surpresa, isto é, antes que o pessoal tivesse tido tempo de chutá-lo pra cima. Estava bom demais, e tivemos mais certeza disso quando os Estados Unidos reclamaram. Os bancos ianques queriam a grana que o Brasil devia, os papagaios da dívida externa, e sugeriam que exportássemos mais para conseguir a bufunfa. Mas a indústria deles queria vender mais para o Brasil, para levar nossa poupança, agora que a inflação não comia nosso rico salarinho. Uau!
Quatro meses depois, alguma coisa passou a cheirar mal. Carne e leite, especialmente. Desapareceram dos supermercados. Um ou outro produtinho sempre faltou, nada que um agiozinho não resolvese. Agora era sério. O Brasil tinha um boi por habitante, mas o meu e o da minha namorada se escafederam. Boicote? Nããão, “magina”. A TV mostrava os fiscais da Sunab caçando boi gordo no pasto dos inimigos, os aliados do Bakunin, os bagunceiros. Delirávamos. Em julho, o governo – que continuava gastando os tubos – resolveu “consertar rumos” do plano porque estávamos consumindo demais, ou seja, fazendo um boca-a-boca no dragão combalido. E nos cravou o empréstimo compulsório do combustível, que “seria devolvido”. A gente fazia que não via, mas havia água por todos os lados. O governo precisava da vitória nas eleições regionais de novembro e adiava os ajustes. Quatro dias depois da goleada, veio o Plano Cruzado II: liberaram o preço da minha cervejinha e trocaram o índice de inflação, para manter os números abaixo do gatilho. O país explodiu em badernaços, depredações. Sarney deve ter visto aliados do Bakunin até no banheiro da Granja do Torto.
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