A pergunta "por que o Brasil precisa manter juros reais tão altos?" já gerou todo o tipo de respostas. Algumas análises (as mais frequentes, temo) pegam uma amostra de países, computam todas as variáveis possíveis e chegam a uma conclusão do tipo: "os juros precisam ser altos porque o Brasil tem a combinação de uma história relativamente recente de calote da dívida, fragilidade cambial, inércia dos índices de preços, incerteza jurídica e passado de hiperinflação". Como qualquer terceiroanista de economia sabe, quanto mais variáveis são adicionadas a uma regressão econométrica, maior é a aderência do modelo aos dados. Essas explicações, aparentemente completas e com baixo grau de abstração, acabam tendo tanto valor quanto dizer que o Brasil tem juros mais altos do que o resto do mundo porque é habitat do quati, foi berço do samba e do chorinho e tem cinco títulos mundiais de futebol. Tudo rigorosamente correto, mas leva à conclusão de que a única ação que resolveria o problema é implodir o país, replicar as condições do paleozóico e começar tudo de novo.
Lara Resende, claro, foge dessa mediocridade. Junto com dois co-autores igualmente conhecidos (Pérsio Arida e Edmar Bacha), foi o primeiro a levantar como a principal responsável pela distorção, em um influente paper de 2004, a chamada "incerteza jurisdicional", decorrente de um "viés anti-credor generalizado". A hipótese foi refutada, primeiro pela observação de que países ainda mais inseguros juridicamente do que o Brasil trabalham com juros significativamente mais baixos, e, posteriormente, por trabalhos que o próprio Lara Resende cita no Valor. No novo artigo, ele volta a atenção para um trabalho de Olivier Blanchard publicado mais ou menos na mesma época, que tenta explicar os juros altos pelos próprios juros altos. Cito, do Valor:
Existiria uma taxa de juros, mais baixa do que a efetivamente praticada pelo Banco Central, que teria igualmente sido capaz de manter a inflação dentro das metas. O equilíbrio dos últimos anos, desde o Real, seria um equilíbrio perverso, onde alta taxa de juros eleva o custo da dívida pública, agrava o desequilíbrio fiscal, que por sua vez eleva o risco dos títulos públicos e a taxa de juros de equilíbrio. Tudo mais constante, teria sido possível manter a inflação dentro das metas com uma taxa de juros mais baixa e menor risco percebido da dívida pública.
Eu sempre gostei dessa tese, seja porque ela ainda não foi negada pela realidade ou porque, de fato, a situação fiscal brasileira pareceria significativamente mais fácil caso o serviço da dívida não fosse tão caro. Para contornar essa situação, seria possível: i) baixar os juros "artificialmente" e ver o que acontece ou ii) reduzir o tal risco percebido da dívida pública com um esforço fiscal ainda maior do que o realizado nos últimos anos. Aí fica evidente uma escolha de política econômica: os ortodoxos, como Lara Resende defende no texto, enxergam como única solução viável o esforço fiscal, para que a dívida caia ainda mais e o aumento correspondente na poupança privada force os juros para baixo. Heterodoxos de diferentes graus podem argumentar que, comparativamente, o fiscal brasileiro atualmente é dos mais restritivos do mundo, e nem por isso tivemos o benefício de juros mais baixos. A solução, portanto, seria mesmo arrumar um meio para baixar os juros e depois ver o que acontece, sem nenhuma garantia, como o texto adverte, de que isso vá levar a uma situação melhor (de juros mais baixos / inflação controlada). Esse meio depende do grau de heterodoxia do crítico: deve haver quem defenda que todos os membros do Copom sejam guilhotinados e substituídos por alguém que ponha a Selic a 2% no dia seguinte; outras soluções menos radicais devem aparecer, como vou exemplificar logo mais.
Na minha visão, o caminho ortodoxo depende de uma queda na inflação. Explico: com um banco central perseguindo uma meta formal, os juros de um dia, cujo nível depende inteiramente da política escolhida pela autoridade monetária e que influenciam toda a estrutura a termo, só podem ser cortados caso a inflação esperada para o futuro esteja pelo menos próxima à meta. Com um problema de indexação que se agravou nos últimos anos, é difícil ver um cenário onde a inflação esperada no Brasil fique consistentemente perto ou abaixo de 4.5% ao ano: isso só ocorreria com uma queda forte nos preços de bens comercializáveis ou num cenário de forte recessão, que dê alguma folga para o mercado de trabalho. Sem essas rupturas, que praticamente independem de qualquer medida do governo, estaríamos condenados ao patamar de juros atual, pelo menos enquanto o esforço fiscal não produzir mais uma redução considerável na dívida. Ainda que isso aconteça, caso a inflação persista (não parece clara uma relação imediata entre disciplina fiscal e queda na inflação, e é relativamente fácil conceber um cenário em que a dívida como fração do PIB caia mais, digamos, cinco pontos percentuais e a inflação continue incomodamente alta), continuaremos na situação bizarra dos dias de hoje: somos dos países com as contas do governo em melhor situação no mundo, mas pagamos o juro real mais alto.
Assim, creio que o problema mais urgente a ser atacado pelo governo, caso queira levar a sério a intenção declarada de levar os juros reais a 2% ao ano, é a inflação. Curiosamente, parece razoavelmente claro para ambos os lados do debate que não se pode atacar a inflação com meios totalmente ortodoxos, já que a simples aplicação de uma regra de Taylor ou algo do tipo levaria à conclusão de que precisamos de juros ainda mais altos, com todas as distorções consequentes. Creio que a inflação brasileira deve ser combatida nos motivos que levam à sua persistência e rigidez. Choques de desindexação e desoneração deveriam ser perseguidos; o efeito desses choques nos níveis de preços dariam ao BC o espaço necessário para baixar os juros e fugir do equilíbrio perverso descrito por Blanchard.
O texto de Lara Resende tem grande valor no debate atual, sobretudo pela honestidade intelectual de reconhecer que a melhor explicação para a anomalia dos juros brasileiros é uma alternativa à hipótese que ele próprio formulou. Porém, creio que a solução mais imediata para essa anomalia requer um esforço além do puro receituário ortodoxo que ele recomenda. Por um lado, é de certo alívio perceber que a ortodoxia tem deixado de ser a única alternativa de política econômica viável; por outro,é difícil enxergar qualquer possibilidade de ousadia enquanto nós e nossos representantes no congresso compartilharmos da ilusão de que o país já deu certo, e que basta, no futuro, extrapolar a “receita de sucesso” dos últimos anos, o que implica em um imobilismo que só interessa ao status quo. Talvez só haja espaço para mudança quando a situação não parecer tão brilhante (e aí veremos mais claramente de quem são os interesses que estão sendo defendidos). Parafraseando uma frase que li há algum tempo, em outro contexto, economia só é intrigante porque é difícil pra caramba.
8 comentários:
vc não acha que por aqui se perdeu uma grande oportunidade de se cortar os juros substancialmente no início de 2009? se ao invés de terem adotado as medidas de estímulo fiscal tivessem partido para o alívio monetário mais acentuado, eu não sei se a recuperação proporcionaria, em 2010, um PIB de 7%+, mas uma Selic na casa de 5% - possível naquela ocasião, dado o tombo no PIB - teria um significado importante e, quem sabe, permanente.
o "O", do "Mão Visível", batia nessa tecla, e eu achava bastante palusível.
Acho que poderia ter sido feito, sim, com boas chances de ter dado certo. O argumento contrário é que, mesmo com a economia caindo de cabeça, a inflação fechou 2009 a 4,3%, só 20 p.b. abaixo da meta, e voltou a subir em 2010 - o que supostamente é indicação de que, mesmo ainda alto, a 8,75% o juro era baixo demais para segurar a inflação perto da meta. Para ter dado certo, precisaria que o novo nível levasse ao equilíbrio benigno do Blanchard, mas, ainda assim, acho que ainda seria cedo demais para concluir isso, e a Selic teria subido do mesmo jeito - ainda que de um patamar mais baixo, o que levaria à várias explicações ex-post de como o juro neutro de equilíbrio caiu.
E como ficaria o câmbio? Com uma queda brusca dos juros os dólares quem entram no mercado especulativo não iriam parar de inundar o país causando uma apreciação na moeda nacional? Sempre escutei que esses dólares ajudam ao governo fechar suas contas. Até que ponto isso é verdade e como seria o cenário com os juros baixos?
Uma parte, sim, e provavelmente isso faria com que o real depreciasse (acho que você pensou nisso e escreveu o contrário, eu também vivo fazendo isso). E, de fato, esses dólares facilitam o financiamento do déficit de conta corrente, mas não me parece uma boa estratégia de longo prazo contar com isso - até porque tem um custo fiscal enorme, no fim das contas, o banco central está recebendo os juros das treasuries que compra e pagando os juros em reais da dívida que emite para esterilizar as compras.
Vale ler o texto do Delfim que saiu hoje no Valor, ele fala exatamente disso: enquanto os juros no Brasil não forem minimamente alinhados com os do exterior, teremos que ficar lutando com o câmbio supervalorizado.
Sinceramente, li o texto do Blanchard anos atrás e reli o abstract depois de reler o texto do Lara Resende.
É um paper de macro aberta que diz que pode ocorrer o seguinte:
BC sobe juros, a alta de juros aumenta a probabilidade de um default do governo, esse aumento de probabilidade de calote leva os investidores estrangeiros a tirar capital do país, isso deprecia o câmbio e leva a um aumento de inflção. Logo, via um dos canais de transmissão de política monetária (câmbio, outros são expectativas e investimento, por exemplo), aumento de Selic leva a aumento de inflação.
OK? Blanchard diz isso e acha alguma evidência empírica que isso pode ter ocorrido em 2002/3. É isso, ponto!
Pode até falar pro Lara Resende, pq ele distorceu o paper.
Seu argumento que baixar juros daria espaçõ fiscal pro governo é outra coisa. Concordo que se diminuir Selic, pode haver mais espaço para o governo gastar. Mas essa baixa de Selic provavelmente levaria mais inflação e mais gastos com juros de títulos indexados a ipca, ok? e esse espaço fiscal do governo seria gasto com investimento ou custeio do governo, o que aumentaria ainda mais a pressão inflacionária.
Sobre desonerar e desindexar. Desonerar ótimo, simplificar estrutura tributéria, ótimo.
Desindexar: porra, pq o governo não persegue uma emta de inflçao baixa e alcança ela, q dai as pessoas vao ibndexar por essa inflação. O custo de baixar a inflação e estabilizá-la tem que vir antes. O que o governo pode fazer é parar de usar IGP em seus PRÓPRIOS contratos.
Indexar pela meta é besteira. Delfim fez isso no começo dos anos 80, a credibilidade hj é maior, mas não é pra tanto.
Mas é exatamente essa a escolha que teremos que fazer. Para alinhar com os juros do exterior e desvalorizar o real, o governo vai ter que parar de gastar. Por que senão, de uma hora para a outra os dólares pararão de entrar, sem contar com o "susto" no mercado.
Por outro lado, aumentar o compulsório dos bancos e regras mais restritivas ao crédito não ajudariam a controlar a inflação sem se utilizar da taxa de juros?
Ricardo, muito obrigado pelo comentário. Fui até catar o livro ( Inflation Targeting, Debt, and the Brazilian Experience, 1999 to 2003 ) na estante pra não falar besteira.
De fato, o paper do Blanchard diz exatamente isso que você falou. Só que no famigerado paper do Lara Resende, Arida e Bacha, que está no mesmo livro, ele apresenta essa história do duplo equilíbrio como uma das três linhas de argumento geralmente usadas para explicar os juros no Brasil - mas sem citar o autor (imagina o esporro que tomaria se fosse um aluno de pós entregando o paper pra um professor). Pra piorar a confusão, na parte de referências, eles não citam nenhum paper do Blanchard, então, de fato, ou o Lara Resende se confundiu e atribuiu ao Blanchard algo que ele não criou, ou a referência é a um trabalho dele que não o de dominância fiscal. Quando tiver um tempinho, vou dar uma procurada pra ver se acho quem é o autor da ideia.
Eu ouvi essa história do "espaço fiscal" direto do Nelson Barbosa, em um seminário há umas três semanas. Supostamente seria usado para investimento (o que, acho, seria bom), mas em se tratando do Brasil, é sempre melhor esperar pra ver.
No mesmo evento, o Nelson Barbosa falou que é politicamente inviável passar no congresso qualquer proposta de desindexação enquanto a inflação estiver alta (e isso deve incluir a correção dos próprios contratos do governo pelo IGP, o que, afinal, é um jeito de transferir dinheiro de uma autarquia para outra e acomodar alguns interesses). Mas acho difícil a inflação baixar estruturalmente sem passar por isso - e nisso concordo com o diagnóstico que está sendo aplicado neste governo, o custo de se levar a inflação pra meta (de 4,5%, imagina para uma mais baixa) usando só os juros é muito alto.
Hoje saiu no Valor que já desistiram de mudar a meta para 2013, então, pelo jeito, essa discussão vai ficar pro próximo mandato... Enquanto isso, acho que a inflação só cai pra valer com os tais choques ou com uma recessão pior do que a de 2008 / 2009.
Uma hora, mesmo com o diferencial de juros absurdo, os dólares vão parar de entrar. Basta os termos de troca piorarem sensivelmente, e aí vai ser de novo aquela correria de quem se alavancou em dólares.
Pablo, o BC já está atuando nesses canais - segundo eles próprios, o que fizeram até agora equivale a uma alta de juros de 1,5%. Poderiam fazer mais, claro, mas ninguém quer matar a galinha dos ovos de ouro do crédito de uma hora pra outra.
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