terça-feira, 31 de agosto de 2010

Professor Soros

Terminei há pouco o livrinho The Soros Lectures, que foi lançado este ano nos EUA para juntar cinco aulas que George Soros deu, em outubro do ano passado, na Central European University de Budapeste (fundada por ele próprio em 1991). Creio que essas aulas são o jeito mais fácil de acessar o pensamento abstrato de Soros, já que foram desenhadas para leigos e seus livros não são exatamente famosos pela facilidade de leitura e compreensão.

Soros, antes de ganhar bilhões no mercado financeiro e se tornar a cara mais conhecida do mundo dos especuladores, estudou na London School of Economics sob a orientação do filósofo Karl Popper, e daí vem sua ambição de tentar explicar o mundo. Mais do que isso, creio (pela leitura de uma biografia escrita por Robert Slater) que Soros é guiado por três motivações: a primeira é de ser levado a sério, de justificar como ele soube ganhar tanto dinheiro no mercado financeiro sem depender da sorte. A segunda é de devolver para a sociedade, em forma de conhecimento ou filantropia, esse dinheiro ganho às custas de tesouros nacionais e outros especuladores menos competentes. A terceira são suas crenças: Soros de fato parece acreditar em "sociedades abertas" e que o ativismo intelectual e político é uma maneira nobre de dedicar o tempo depois que as preocupações com dinheiro foram (muito) superadas.

Nessas aulas, Soros dedica-se primeiro a explicar sua teoria da reflexividade: em todo processo que envolve seres humanos, suas percepções são tão importantes quanto à realidade, e essas percepções podem também afetar objetivamente a realidade, gerando ciclos que se autoalimentam. Essa teoria serve muito bem para explicar a formação de bolhas no mercado financeiro, mas Soros é mais ambicioso: para ele, a reflexividade é presente em todos os aspectos da sociedade, e deveria ser sempre levada em conta nas formulações feitas por cientistas sociais (economistas inclusos). A realidade de Soros é ambígua, com causas e efeitos se confundindo e, por isso, difícil de ser modelada, para desespero dos que tentam prever o futuro com base nos dados passados.

Feito isso, Soros passa pela crise de 2008 / 2009 (segundo ele, o estouro de uma "super bolha" de alavancagem financeira), por como os anos Bush fizeram ele se decepcionar com os Estados Unidos e chega no que achei a parte mais interessante do livro: como o capitalismo pode ser contra a sociedade aberta. Para isso, ele parte de uma discussão muito interessante (pelo menos para mim, que estava procurando há algum tempo ler algo sobre esse tema) sobre a moralidade dos mercados: segundo ele, os mercados são amorais, já que seus valores são expressos em unidades monetárias e unidades monetárias são intercambiáveis, sem que os participantes precisem exercer algum julgamento moral nas suas decisões de compra e venda. Essa característica pode ser útil no nível individual, com diversos participantes atuando de acordo com seus interesses, mas falha quando é estendida para a política, que deveria levar em conta questões éticas e morais e a defesa do interesse coletivo. Nas palavras dele:
"... taking it for granted that all human behavior is guided by self-interest leaves no room for the exercise of moral judgment - and society cannot exist without some ethical precepts"


"Extending the idea of a free-standing market, self-governing and self-correcting, to the political sphere is highly deceptive because it removes ethical considerations from politics, which cannot properly function without them."

A vitória dos que ele chama de "market fundamentalists" ao longo dos anos 1980 e 1990 teria levado à situação atual, na qual governos seguem os princípios e interesses do livre mercado e deixam de se preocupar com as tais considerações éticas ou com o coletivo. Para isso, Soros propõe uma solução utópica e um pouco ingênua: que as pessoas separem seus papéis de participantes do mercado dos de agentes políticos -- ou seja, ajam em interesse próprio no que diz respeito a mercados e guiem-se pelo interesse público na política. Difícil acreditar que isso vai acontecer sem uma revolução ou uma quebra total do modelo atual.

Na última aula, Soros aponta para a necessidade de uma reforma no sistema financeiro, chamando os governos das principais potenciais para uma nova espécie de Bretton Woods, que tentaria chegar em um modelo de regulação global. Aqui vale novamente a observação acima: a necessidade do Bretton Woods original só foi percebida depois de um cataclisma; imagino que os países só vão deixar seus interesses atuais em busca de algum consenso quando o capitalismo parecer em perigo (mais do que esteve em 2008).

É difícil imaginar que Soros teria a mesma visibilidade atual caso tivesse optado, há mais de 50 anos, por seguir na carreira acadêmica e não tivesse se tornado um dos homens mais ricos do mundo. De qualquer forma, suas causas e idéias são muito interessantes e relevantes e, ao contrário de muitos teóricos, ele efetivamente coloca dinheiro nelas. Isso, junto com a maneira como ele tornou-se rico e influente (sendo um outsider, tomando riscos e, diferentemente de muitos "gênios" do mercado financeiro, sem depender de dinheiro de terceiros e da gentileza de governos), concede a ele uma autoridade que dificilmente é igualada no debate atual. Daí a relevância de The Soros Lectures.


The Soros Lectures, George Soros, 2010. US$ 11,54 na Amazon.

2 comentários:

Rodrigo, o Soneca, Pontes disse...

Sobre a utopia de "que as pessoas separem seus papéis de participantes do mercado dos de agentes políticos", na verdade me parece alcançável mais pela transformação gradual do que por ruptura total do sistema.
E não considero tão ingenua assim.

Não imagino que a questão seja transformar um egoista(num sentido não pejorativo) numa Madre Teresa. Com o devido grau de maturidade no mercado financeiro, os agentes passam a se preocupar em mais estabilidade e confiança no comportamento dos mercados e isso pode ser dado por um pensamento publico separado do privado.
Imagino algo mais ou menos assim: o mesmo especulador que fez rios de dinheiro numa bolha, sabe que na próxima bolha pode não ter tanta sorte (literal ou não) assim.
Isso dependeria, a principio, de uma desmitificação do mercado financeiro (como uma arena de gladiadores onde só os mais fortes sobrevivem e quem se dá mal ou não quer entrar é "fraco") e pela diminuição de "gamblers", como aquele fundo do coreano lá.

Drunkeynesian disse...

Acho que não funciona bem assim... o mercado financeiro, deixado à própria sorte, continua sendo a arena de gladiadores que você citou (como na maioria das vezes é um jogo de soma zero, não teria como ser muito diferente). E não sei bem o que você pensou quando falou em "maturidade", mas a minha impressão é que as coisas nesse sentido deram vários passos para trás: uma das coisas que não mudou com a crise é que os executivos de banco continuam tendo incentivos para agir do jeito mais irresponsável possível, já que recebem bônus enquanto as coisas estão boas e o governo aparece quando ficam ruins. Nesse sentido, a mudança teria mesmo que ser regulatória, vindo de cima para baixo.