terça-feira, 24 de agosto de 2010

Porque o BNDES não deve ser a (única) Geni

Virou um dos hobbies favoritos da imprensa econômica jogar pedra no BNDES. Os argumentos são conhecidos, concordo com a maioria deles e não vou repetí-los aqui (para quem não estiver atualizado, basta clicar no link "BNDES" aí à direita). Tal consenso me incomoda a ponto de me fazer repensar o assunto (podem dizer que é marra), e vou tentar aqui emendar uma linha de raciocínio para chegar em conclusões um pouco diferentes das que tem sido faladas.

O fato frio e concreto que gera a polêmica é que o BNDES aumentou seus desembolsos de R$ 65 bilhões, em 2007 (o ano em que Luciano Coutinho assumiu a presidência) para um ritmo anual atual de cerca de R$ 120 bilhões (foram R$ 137 bilhões em 2009 e R$ 73 bilhões nos sete primeiros meses de 2010). Um segundo fato é que esses desembolsos foram, em sua maioria, destinados à empresas ou grandes o suficiente para poderem acessar o mercado de capitais e/ou que atuam em setores que não geram o tal desenvolvimento econômico e social que o banco se propõe a promover (ao contrário da Geni da música, ele não dá pra qualquer um). De fato, é preciso uma capacidade grande de abstração e alguma boa vontade para imaginar como ajudar a expansão internacional de um frigorífico pode implicar em algum retorno para os contribuintes, que são, no fim das contas, os acionistas do banco.

Um banco comercial (ou um investidor de mercado de capitais) empresta dinheiro para empresas que julga serem capazes de, no futuro, repagar o empréstimo mais os juros. Para a empresa, faz sentido tomar o empréstimo se ela tem um projeto de investimento cuja rentabilidade (taxa de retorno) esperada é maior que os juros do empréstimo -- via de regra, quanto mais arriscado for o ramo de atuação da empresa, maior é o retorno esperado do projeto e maior deve ser o juro que o banco cobra para financiá-lo. Outros fatores que podem influenciar na determinação do juro são o tamanho da empresa (empresas maiores contam com fontes diversas de fluxo de caixa, e poderiam repagar o empréstimo mesmo se um determinado projeto não der certo) e o seu histórico de crédito (bons pagadores no passado são vistos como potenciais bons pagadores no futuro).

Com isso em mente, não é difícil imaginar que alguns projetos não encontram financiamento voluntário (já excluindo, obviamente, os fraudulentos). Os juros para empresas novas podem ser proibitivos, projetos de inovação têm sucesso incerto (arriscados, portanto, do ponto de vista de geração de caixa) e alguns investimentos levam tempo demais para maturar (o exemplo clássico é uma usina hidroelétrica). Pode ocorrer também de um investimento ter um grande impacto social e uma taxa de retorno baixa (saneamento básico, por exemplo). Para esses casos, a utilidade de um banco estatal de fomento é evidente: o estado preenche um vácuo deixado pelo mercado, fornecendo crédito subsidiado e de longo prazo para projetos de interesse do país.

A outra utilidade potencial de um banco de desenvolvimento é financiar uma determinada visão de política econômica. Neste caso, o exemplo de sucesso mais claro é o da Coréia do Sul e seus chaebols, conglomerados industriais criados a partir de empresas familiares que hoje são mundialmente conhecidos pelos nomes Samsung, Hyundai e LG (abreviação de "Lucky Goldstar", para os curiosos). Lá funcionou a estratégia de manter um câmbio desvalorizado, investir pesado em determinados setores e protegê-los da concorrência internacional até as empresas serem capazes de fazer bem e barato. O segredo, neste caso, foi a escolha dos setores: os coreanos privilegiaram a indústria pesada, de capital intensivo, empregadora de engenheiros. Isso não teria sido possível sem a formação de uma mão-de-obra especializada, com boa base em ciências exatas, e assim se criou um círculo virtuoso.

Creio que a atuação do BNDES deve ser vista nesse contexto, embora com um foco totalmente distinto do coreano. O Brasil tem se empenhado em produzir o que o governo chamou de "campeões nacionais": queremos ter os maiores produtores de proteína animal do mundo, as maiores usinas de etanol, as maiores fazendas de soja, e por aí vai. Imagino que alguém no governo colocou na cabeça que o Brasil deve se especializar em agricultura e pecuária -- uma aplicação da teoria das vantagens comparativas -- e deixar a indústria e outros setores em segundo plano. Se essa premissa está correta, o BNDES é apenas um executor dessa política deliberadamente escolhida.

A reflexão deve ser, portanto, sobre se é melhor criar bois, plantar cana de açúcar e escavar minério ou formar um parque industrial. A resposta não é óbvia: alguns poucos países conseguiram se desenvolver com base nesses setores primários (Austrália, Canadá); o caminho seguido pela Europa, Estados Unidos e Ásia foi bem diferente. A situação atual é que o Brasil está: 1) criando, no setor externo, uma dependência enorme de commodities (o volume das exportações brasileiras nunca esteve tão concentrado), 2) financiando a criação de alguns mamutes que quase certamente serão "grandes demais para falhar", 3) formando uma geração de oligarcas constituída por usineiros, pecuaristas e o emblemático vendedor de promessas Eike Batista. Enquanto isso, o país segue sendo um dos piores entre os países de renda similar para o empreendedor e gritando por obras de infraestrutura.

A correção dessas distorções não depende do BNDES: ele pode ser apenas um instrumento útil para depois que as decisões tiverem sido tomadas. Portanto, prestemos menos atenção no que o BNDES faz e mais nas escolhas deste governo e no que planejam os candidatos para o executivo nos próximos anos (devo escrever sobre isso em breve, assim que criar coragem para passar os olhos nos programas dos presidenciáveis). Com o relativo sucesso do Brasil nos últimos anos (lembre-se do mantra "Lula sortudo": nunca antes na história deste país os termos de troca -- a diferença de preços entre o que exportamos e o que importamos -- melhoraram tanto como nos últimos oito anos), esse debate ficou totalmente para segundo plano, com a impressão de que não há estratégia melhor do que fornecer o máximo possível do que a China precisa e deixar o câmbio se apreciar (afinal de contas, isso ajuda com a inflação e faz o brasileiro se sentir rico). Deveríamos aproveitar essa bonança para questionar essa outra idéia que virou senso comum.

2 comentários:

Danilo disse...

1) Acho sim que é marra sua de tentar ponderar um pensamento que começa a ficar corrente. haha. Você TEM QUE LER 'The Art of Contrary Thinking"...

2) Outro dia me argumentaram que mesmo as grandes empresas não conseguem se financiar no mercado aberto com a taxa obtida com o BNDES...

3) Como bem disse aquele pesquisador do IPEA na entrevista da CBN, se a prática do BNDES for uma política pública ('gigantes de comodities), sabida e aprovada pela população (por mais bizarro que isso possa parecer), haveria menos crítica ao BNDES...

4) Mas, obviamente, não acho que seja o caso: como o Hotel Gloria do Eike entraria nesse contexto??

Ou seja, é só farra mesmo!

Abraço

Drunkeynesian disse...

1) Vou tirar da estante esta semana.

2) É verdade. Não existe juro em reais para o mercado mais baixo que o do BNDES. Mas imagino que essas empresas se virariam bem no mercado, mesmo pagando mais, ou pelo menos teriam mais critério nas suas decisões de investimento.

3) Bom, a população apóia o governo, e a política é dele... Talvez falte informação, mas isso vale pra tantas outras coisas; o fato é que o agregado, aos olhos do eleitorado, é tão bom que o Lula tem 80% de aprovação e vai eleger a sucessora no primeiro turno.

4) Como diria o Neto, você é um brincalhão...