Esse é daqueles posts que faço pra organizar minha cabeça. Não deve ser de interesse para quem não se interessa por mercados ou futurologia gratuita (devem sobrar dois leitores).
Depois dos problemas com o sistema bancário do Chipre, passei a trabalhar com a possibilidade que poderíamos voltar a ver sombras de uma crise bancária generalizada sobre a Europa. Por um tempo essa tese encontrou correspondência nos mercados: as bolsas do continente, no geral, tiveram desempenho pior do que as dos EUA; e, dentre essas bolsas, sofreram mais as de países com grande peso de bancos no índice e maior percepção de fragilidade (Espanha, França, Itália). Há mais ou menos dez dias esses movimentos se intensificaram, com bolsas americanas também caindo e alguns movimentos violentos em commodities dando indicações de uma mini-crise deflacionária.
Em algum momento da semana passada, isso mudou, com os movimentos descritos acima sendo descontinuados: bolsas europeias passaram a subir, deixando EUA para trás; entre essas bolsas, os maiores ralis foram nos países mais frágeis. O ouro começou a se recuperar de um movimento particularmente agudo e o iene voltou a se depreciar contra a maioria das outras moedas. O dólar seguiu se fortalecendo e os juros de títulos longos em parte do mundo desenvolvido fizeram novas mínimas.
Como fundo a isso, vejo duas possibilidades:
i. Uma recuperação técnica, já que alguns dos índices europeus estavam testando suportes importantes, que, se respeitados, levariam a uma correção da queda e possível formação de um intervalo bem definido para os próximos meses;
ii. Indicação de corte de juros pelo Banco Central Europeu - isso seria compatível com as indicações de atividade mais fraca na Alemanha, o movimento das bolsas, dos títulos e do euro. Também estaria em linha com o tema geral de iniciativa dos bancos centrais, que deixaram de reagir a choques e passaram a tomar iniciativas para tentar promover crescimento.
Se (ii) estiver correto, poderemos ver bolsas fazendo novas máximas para o ano e, eventualmente, o euro encontrando um novo patamar, mais perto de US$1,20. Com o dólar relativamente forte, é mais difícil para commodities encontrarem espaço para subir, o que daria continuidade à fraqueza relativa de moedas de produtores e suas respectivas bolsas.
Ontem outro fato me convenceu de que provavelmente estamos no início de um período de recuperação das bolsas da Europa com relação às dos EUA: a Apple, que foi claramente a líder dos índices americanos no ano passado, anunciou recompra de ações e aumento de dividendos. Creio que a mensagem é que a companhia perdeu, ao menos temporariamente, a capacidade de gerar lucros com base em inovação, e está gastando caixa para agradar acionistas e comprar tempo (e tomando um risco de
cross-border grande, já que o caixa da companhia está no exterior e ela tomará empréstimos nos EUA para pagar as recompras e dividendos). Isso pode ser bom para os preços das ações no curto prazo, mas me parece um sinal claro de que a companhia está num momento de inflexão (como se não bastasse o movimento dos preços). Evidentemente tudo pode mudar com o lançamento de novos produtos, mas não é bom contar com isso (o que também ficou evidenciado desde o ano passado, quando muitos analistas citavam a "capacidade infinita de inovar" da empresa como justificativa para preços-alvo ao redor de $1,000). Se a Apple não lidera, os candidatos naturais são os bancos, novamente registrando lucros recorde. Porém, se é esse o tema dominante, há muito mais espaço para recuperação na Europa, a preços mais descontados e possibilidade de aumento de lucros com juros mais baixos e outras possíveis benesses do BCE.
No médio / longo prazo, é importante notar que quase toda a recuperação dos mercados estará fundada em ideias no mínimo duvidosas: que bancos centrais podem influenciar decisivamente os níveis de atividade e preços, que ações de bancos com problemas graves de balanço podem valer alguma coisa e que bancos são os melhores instrumentos para distribuir dinheiro público para toda a economia. Isso faz com que os níveis atuais sejam extremamente frágeis, já que não parece haver melhora significativa em fundamentos (justo o contrário, em alguns casos). Porém, talvez o confronto com a realidade demore a acontecer, e também é possível que a primeira indicação (dados do Japão neste ano) apontem para a direção oposta, de sucesso da iniciativa de expansão monetária. O "sucesso" levaria, claro, a mais incentivos para repetição desse tipo de política, inflando ainda mais preços e deixando cada vez menos opções à disposição dos governos.
Em resumo, creio que tudo vai acabar em lágrimas, mas provavelmente estamos num período de euforia para alguns mercados, até que um novo esqueleto saia do armário (não são poucos enfiados nos balanços de bancos na Europa). Na dúvida, compre dólares.