Escrevi, duas postagens abaixo, que pretendia dar uma olhada nas propostas de política econômica dos principais candidatos à presidência (no meu entender, Dilma, Serra e Marina --
sorry, periferia) assim que eu criasse coragem. Comecei a tarefa
hoje ontem, e, para minha surpresa, descobri que ela vai ser muito mais fácil do que eu imaginava (
ops... estou revisando o texto e concluo que não foi nada fácil). Explico: dos três mencionados, até agora (faltando menos de 40 dias para o primeiro turno das eleições), apenas Marina Silva dignou-se a colocar na internet uma versão preliminar do seu programa de governo. Os demais candidatos devem achar o tema menos relevante, seja porque tem medo / vergonha de apresentar suas propostas, porque acreditam que não há muita coisa nova que mereça ser colocada no debate ou por qualquer outro motivo mais mundano. A seção "
Propostas" do site da Dilma tem um texto de apresentação assinado pelo coordenador da comissão de programa de governo Marco Aurélio Garcia, que diz que "
um produtivo debate sobre as questões mais importantes para o Brasil e o povo brasileiro está em curso" (sempre deveria estar, não?) e que "
está sendo concluído um documento síntese com os compromissos da candidata". Esperamos, então. Ainda nessa seção, há um espaço para contribuições do internauta (a única sobre o tema "Política Industrial", por exemplo, pede socorro para a região da Nova Alta Paulista). No site do candidato do PSDB, o visitante também pode mandar suas idéias sobre "Temas Quentes", e a única contribuição de Serra (que só pode ser acessada depois de se preencher um cadastro pentelho e entrar para a lista de spam do partido) são vídeos curtos cujo conteúdo se resume a, como gosta de dizer um chefe meu, platitudes & generalidades. Sendo assim, vou comentar sobre o programa da Marina e tentar levantar algumas possibilidades dos programas de dona Dilma e seu Zé.
Marina Silva
O título da
parte do programa da Marina que trata de economia é "Economia para uma sociedade sustentável", e quem deve estar por trás dele são os professores José Eli da Veiga (USP) e Eduardo Giannetti da Fonseca (ex-USP, agora Insper). O José Eli foi meu professor na graduação e deve ser um dos acadêmicos brasileiros mais qualificados em economia do desenvolvimento (é grande admirador do Amartya Sen) e no impacto que as mudanças climáticas devem ter na elaboração da política econômica. O Giannetti aderiu à campanha mais recentemente, e é um dos economistas mais "pops" do Brasil, por publicar livros de interesse geral pela Companhia das Letras e apresentar uma série sobre o valor do dinheiro no tempo no "Fantástico".
A introdução do texto reconhece que o objetivo maior da economia é "a progressiva capacitação dos cidadãos para vidas mais livres e dignas de serem vividas". Isso é 100% Amartya Sen (Desenvolvimento como liberdade). Se essa finalidade é impecável e inegavelmente progressista, os meios são mais vagos. A lista de medidas futuras tem 15 pontos, sendo o primeiro (talvez para não assustar) a manutenção do chamado "tripé" de metas de inflação, câmbio flutuante (com intervenções apenas para diminuir volatilidade) e política fiscal responsável. Este último seria a condição para uma queda nos juros, que é uma premissa bastante PUC-RJ (ou seja, conservadora). Novamente, pode ser para não assustar, mas não foge de nada do que foi feito nos últimos anos.
A parte que trata de infraestrutura talvez seja a mais interessante: diz que terá como prioridade o investimento em saneamento básico (o país ainda tem 35 milhões de pessoas vivendo em locais sem coleta de esgoto, é sempre bom lembrar) e que os investimentos em transporte deve ter ênfase em ferrovias e hidrovias. O programa chama diversas vezes a atenção para a transição para uma economia de baixo carbono -- ou seja, baseada em fontes de energia renovável, com menor dependência do uso de combustíveis fósseis. Mais uma intenção louvável -- há outras que não vou listar, como o incentivo a inovação, que são mais genéricas e consensuais.
O maior problema que encontrei no programa é, aparentemente, deixar o crescimento em segundo plano -- talvez por uma questão conceitual, porque o José Eli é um grande crítico de usar o PIB como critério de progresso econômico. Usando ou não o PIB, é preciso uma dose grande de otimismo para acreditar que o país vai conseguir se desenvolver com uma política econômica baseada principalmente em sustentabilidade. Seria o primeiro caso na história, e dependeria de uma grande mudança de paradigma (ou do jeito de medir o sucesso). Tenho a impressão de que todos os outros casos de desenvolvimento acelerado foram "sujos", ecologicamente falando. Juntando isso ao conservadorismo e a tendência a não fazer nada do país, fica difícil acreditar na viabilidade do projeto do PV -- que, reitero, parece ter o programa com as melhoers e mais definidas intenções finais. Com uma dose extra de pragmatismo, seria uma agenda excelente para o país no médio / longo prazo.
Dilma Rousseff
Este é o que realmente importa, já que as chances da Dilma perder a eleição parecem menores do que as do Rubinho vencer o campeonato de Fórmula 1. Muita gente fala que a Dilma vai mostrar as garras assim que eleita e implementar uma política econômica mais voltada para a, digamos, esquerda. Não sei bem no que isso implicaria na prática e não acredito nesse cenário. Por acaso ou não, Lula vai entregar o país com menos de 7% de desemprego, os menores juros da história recente, US$ 250 bilhões em reservas internacionais, o câmbio apreciado fazendo a festa da classe média, redução nos índices de desigualdade, dívida pública baixa, um crescimento decente, e por aí vai. A tentação de recorrer à máxima "em time que está ganhando não se mexe" é enorme, e acho que esse vai ser o cenário dos próximos anos, com algumas pequenas mudanças.
O principal formulador de política econômica de Dilma é o mesmo de Lula, o Palocci (e o economista favorito do Palocci é o Marcos Lisboa, que, até onde sei, está na diretoria do Itaú e meio ausente da vida pública). A religião do "tripé", deve continuar sendo seguida, e, segundo seu evangelho, o próximo passo rumo à iluminação é: "farás um ajuste fiscal e baixarás os juros gradualmente". Está com toda cara que essa vai ser a primeira canetada da Dilma assim que eleita: fazer um apertozinho nos gastos, o mercado vai acreditar, os juros longos vão cair, o Banco Central vai dizer que isso vai permitir que a inflação caia estruturalmente, o CMN vai definir uma meta de inflação menor para 2012 e, se tudo der certo, teremos finalmente os tão sonhados juros de um dígito (pelo menos) em tempos "normais". Provavelmente aí algum çábio vai descobrir que o problema do Brasil não se limitava aos juros, mas... uma coisa de cada vez. Podemos esperar também algum investimento em infraestrutura (o MÍNIMO de preparação para os eventos esportivos de 2014 e 2016), mas não apostaria em nada mais ousado do que a exploração do pré-sal. E é rezar para a China continuar crescendo a 10% ao ano e comprando o nosso minério de ferro a preços cada vez mais altos.
Esse cenário é de uma falta de ousadia que seria ideal para um escandinavo ou para o Japão, mas parece muito conformista para um país que ainda não conseguiu chegar nos US$ 10 mil de renda per capita (para não falar nos outros problemas estruturais que estamos cansados de ouvir a respeito). O cenário de "Everybody Loves Brazil" seria o ideal para alguma mudança mais profunda: o banco central poderia desafiar o paradigma de que é necessário manter o juro de um dia a mais de 10% para que a inflação não exploda, torrar algum dinheiro sério em obras de infraestrutura (sobretudo ligadas a transporte e saneamento), levar a sério a história das PPPs (alguém ainda lembra?), dar algum mandato para algum "desenvolvimentista" para ver se surge alguma idéia interessante... Acredito que, nesse sentido, a única iniciativa será feita via BNDES, do jeito torto que estou acostumado a criticar aqui. Claro que isso vai durar enquanto nenhuma crise fizer as reservas evaporarem ou algo do tipo, mas este texto não é para tratar disso.
José Serra
Eu tenho dito para um monte de gente que comete a insensatez de perguntar minha opinião que acho que o Serra faria muito bem para o país nos próximos anos (e já excluindo a parte política, de alternância de poder, etc). Ele parece ser um cara disposto a tomar um certo risco na economia, que acha que o país precisa de indústria para se desenvolver e que, sem a interferência do estado, estamos condenados a viver de crise em crise de escassez de dólares em função dos preços de commodities. Essa visão não tem nada de nova ou original: foi a que dominou o país por um bom tempo no século passado, até que o sonho acabou nas sucessivas crises de dívida externa desde o final dos anos 70 e foi enterrado com a implementação do real, em 1994.
Há quem ache que o jeito de fazer política econômica evoluiu, e que a forma de tentar fazer um país crescer via indústria, com presença do estado, é como escrever em uma Underwood depois do aparecimento dos computadores e processadores de texto. Claro que a história existe para que os erros do passado não se repitam, mas isso também vale para os lados ruins do chamado neoliberalismo, que não são poucos. E, como economia fora da academia não trata de ficar provando axiomas e demonstrando teoremas, resta aos formuladores de políticas experimentar, descartando o que o tempo provou que não funciona. Por que não tentar o que a evidência empírica e o tratamento estatístico de dados não rejeitou? No caso do Brasil, isso se traduziria em uma alternância entre "escolas de pensamento" (eu acho a academia brasileira em economia muito preguiçosa para poder usar esse termo sem as aspas): sairiam a PUC-RJ e a FGV-RJ, que estiveram no poder nos últimos 15 ou 20 anos, e voltaria a turma da USP, da Unicamp e das PUC e FGV de São Paulo. Isso implica em ter que aguentar o Bresser-Pereira dizendo que temos exemplos positivos para tirar da política econômica argentina nos últimos anos, mas, paciência, é o preço... Fecho aqui o parêntese teórico / ideológico.
O coordenador do programa econômico do Serra é o Gesner Oliveira, que é o atual presidente da Sabesp e professor da FGV-SP. Com todo o respeito ao Gesner, não tenhamos ilusões: o Serra é economista ("mas não fez graduação em economia..." - nem ele, nem um tal de John Maynard Keynes), tem idéias próprias e não deixaria ninguém que não concordasse com ele participar da formulação de política econômica do seu governo. Um governo Serra, imagino, também trabalharia por um corte de gastos correntes no início do governo, corrigiria a sobrevalorização do câmbio na porrada e tentaria baixar os juros antes de uma queda estrutural na inflação. Funcionaria? Não tenho a menor idéia, mas seria uma boa tentativa de tomar proveito de um mundo onde o Brasil é visto como uma futura potência e os governos têm licença para experimentar. Parece também melhor do que "colar" na China e apostar todas as fichas em commodities.
Como escrevi acima, dona Dilma parece estar perto de levar a eleição ainda no primeiro turno, e a tentação para mexer o mínimo possível no arranjo atual (pelo menos na política econômica) deve ser enorme (quem é mesmo o partido conservador?). Mais do que isso: um dos efeitos colaterais do relativo sucesso nos últimos anos pode ser a sensação de que achamos a "fórmula" para que o país dê certo. Para fugir desse engano, é necessária alguma coragem, que torço para que o próximo governo tenha, mas, sinceramente, não espero. Mudanças por aqui só aparecem com a corda no pescoço, quando as alternativas são praticamente inexistentes. Pior para nós.