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Ontem o Banco Central Europeu anunciou que vai emprestar, em termos camaradas (três anos de prazo, juros de 1% ao ano) € 530 bilhões para 800 instituições financeiras. Os empréstimos fazem parte do programa acronimado LTRO (inglês para Operação de Refinanciamento de Longo Prazo), iniciado no final de Dezembro para salvar o sistema bancário do continente e que já concedeu cerca de (voz do Dr Evil) € 1 trilhão em operações desse tipo. Algumas ponderações além das manchetes (acho):
1. O LTRO ataca o problema de liquidez dos bancos, mas não o de solvência: no prazo dos empréstimos, os bancos depositam ativos como garantia (colateral) para o dinheiro recebido. A exigência de qualidade para esse colateral é muito baixa - consta que vale quase tudo, desde bônus da Alemanha à títulos lastreados em hipotecas de casas em Murcia (títulos da Grécia não valem enquanto estiverem em "calote seletivo", passarão a valer uma vez definidos os termos da renegociação). No fim do prazo, em teoria, os bancos têm que repagar o Banco Central Europeu.
2. O dinheiro "novo", idealmente, funcionaria para que os bancos voltassem a expandir o crédito e, por consequência, ajudassem na recuperação da economia. Ocorre que, como bem aponta Richard Koo-san, estamos vivendo uma recessão onde a prioridade das companhias e indivíduos é limpar os balanços, e não aumentá-los (pagar dívidas contraídas no passado). Assim, parece pouco provável que: (i) haja abundância de projetos com bom retorno esperado que justifiquem investidores usarem alavancagem para financiá-los; (ii) os bancos julgarem os créditos bons o bastante para merecer empréstimos (num ambiente em que também estão preocupados em limpar os balanços e levantar capital) e (iii) isso tenha impacto significante na vida do grego ou português médios. O dinheiro acabará, creio, financiando os próprios governos - um banco prudente pode tomar dinheiro no LTRO a 1% ao ano e comprar um título de dez anos da Alemanha a quase 2% ao ano, assumindo o descasamento de duration e embolsando a diferença das taxas, tudo mais constante. Os mais agressivos podem tomar como princípio que existem países grandes demais para quebrar e comprar dívida da Itália ou Espanha ao redor de 5%, levando o carregamento de 4% ao ano (Grécia, Portugal e Irlanda pagam mais, mas estão quebrados ou podem quebrar antes do prazo - nada, porém, que impeça os aventureiros de tentarem a sorte por lá). Se der certo por um tempo, ótimo - será o bastante para uma certa estabilidade no sistema, os bancos publicarem algum lucro e pagarem os bônus aos brilhantes executivos que foram empurrados para essa situação (muitas vezes por suas próprias debilidades). Se der errado, ao final do prazo do LTRO, o BCE terá outro problema para resolver. Exemplo de livro-texto de risco moral.
3. O que também pode ocorrer no período é os colaterais não terem o valor pelos quais foram avaliados quando entraram no LTRO. Tenho pouca dúvida que ainda existem perdas não reconhecidas nas carteiras de crédito dos bancos europeus; na prática, a consequência é a mesma do item acima - mais risco moral para a carteira do BCE.
4. A pergunta final é a famosa "quem paga a conta". Bom, algo dando errado, alguns bancos não conseguem pagar de volta ao BCE e este fica com um buraco no balanço, que deve ser coberto com emissão de dinheiro (a possibilidade do banco central quebrar parece bastante remota). No melhor dos casos, o dinheiro é impresso, isso não desestabiliza o sistema monetário e o BCE captura a senhoriagem, que funciona como um imposto regressivo (proporcionalmente pior para os mais pobres). No pior, esse negócio de imprimir dinheiro em grandes volumes não acaba bem, a inflação acelera, perdem os poupadores e, de novo, a turma menos favorecida, que não tem acesso a mecanismos de proteção contra a inflação (mais sobre a dinâmica aqui). As consequências sociais e políticas também não são exatamente desejáveis.
(Dando tudo certo, os bancos terão usado o crédito barato para gerar lucros e melhorar os balanços, o BCE recebe o dinheiro de volta e devolve os títulos. A economia estará recuperada e esses títulos são pagos no prazo, integralmente. Eva Green e Paola Oliveira aceitam fazer, pro bono, um ensaio conjunto para a Playboy. A vida é boa.)
5. (Observação mais genérica e chutada, talvez não mereça ser lida) Emitir moeda, sabe-se, não cria riqueza - talvez se levarmos em conta o efeito sobre os "espíritos animais" e suas consequências em alguma função de produção, mas os efeitos são de segunda ordem e mais no sentido de reconduzir uma economia a uma tendência de crescimento perturbada por um choque de duração limitada. Porém, tem efeitos distributivos relevantes e perniciosos, como os exemplificados acima. É estranho imaginar que num sistema cujo maior problema (no caso dos países desenvolvidos) é a desigualdade e distribuição muito assimétrica da riqueza criada nos últimos anos as soluções imaginadas pelos governos tenham como consequência provável mais desigualdade. Esse é o aspecto mais repugnante do risco moral gerado pelo jogo de interesses entre companhias e governos: dinheiro de impostos financiando más decisões econômicas de bancos, fundos de pensão, indústrias, companhias aéreas, times de futebol... Algum grande economista ainda vai escrever algo convincente sobre esses subsídios cruzados, torço para que a tempo dessas políticas serem revertidas antes de uma eventual radicalização do eleitorado - este o grande risco oculto desses tempos estranhos.
Mais sobre LTRO na Bloomberg e no Zero Hedge.