Finalmente venci a preguiça e assisti a Trabalho Interno (Inside Job), o documentário sobre a crise de 2007-2009 que levou o Oscar da categoria este ano. Para quem acompanhou a crise pela imprensa na medida em que ela ia se desenrolando, o filme não tem absolutamente nada de novo. Do ponto de vista de mostrar fatos, o mérito é colocar diversos acontecimentos em uma linha do tempo e oferecer a (ainda estreita) perspectiva que os anos que passaram forneceram. A história é contada de forma a demonizar o mercado financeiro (incluindo a já clássica e manjada menção ao consumo de cocaína e prostitutas - tão anos 80, mas ainda eficiente), os reguladores e alguns políticos - nesse sentido, os minutos finais, mostrando que, em Washington, absolutamente nada essencial mudou, são os mais importantes do longa. Qualquer esperança de reforma com a eleição de Obama foi sepultada quando a equipe econômica foi anunciada e Ben Bernanke reapontado para o Fed. Hoje isso parece muito claro, e o que se vê hoje são fogos de artifício, conservadorismo (no pior sentido possível) e uma montanha de hipocrisia.
O que me impediu de compartilhar a opinião média e achar o filme 'espetacular':
- Algumas figuras cruciais da história não foram entrevistadas, e nessa lista estão: Hank Paulson (tesouro e Goldman Sachs), Tim Geithner (Fed de NY e tesouro), Alan Greenspan (Fed), Warren Buffett (Berkshire Hathaway), Ben Bernanke (Fed), Larry Summers (Harvard e diversos cargos em Washington), Dick Fuld (Lehman Brothers), Vikram Pandit (Citi), Stan O'Neal (Merrill Lynch), Joe Cassano (AIG), Lloyd Blankfein (Goldman Sachs), Meredith Whitney (Oppenheimer), Angelo Mozilo (Countrywide), John Paulson (Paulson & Co)... É claro que em um filme de duas horas não daria para ouvir todo mundo e que muitos deles foram convidados e se recusaram a falar; mas qualquer história da crise que ignore o ponto de vista dessas figuras é pelo menos incompleta (para não dizer parcial). O único ex-oficial do Fed entrevistado é Frederic Mishkin, famoso por atestar a estabilidade do sistema financeiro da Islândia em 2006. Pelo mostrado no filme, é inevitável pensar que ele é um completo imbecil - pode ser que ele apenas tenha dificuldades para falar para uma câmera, pode ser que ele seja mesmo um imbecil; neste caso, certamente não é o único dessa história.
- Ainda que os autores tenham feito um tremendo e louvável esforço para explicar ao público como funcionam alguns produtos financeiros relativamente complexos (CDS, CDO), a conclusão que emerge é que derivativos são perigosos por natureza, invenções do mercado financeiro para lesar seus clientes. A humanidade opera derivativos há algumas centenas de anos (milhares, segundo algumas fontes), e não há registro de que eles tenham sido responsáveis pela extinção dos dodôs, o aquecimento global ou mesmo pelas inúmeras crises financeiras e econômicas ao longo da história. Derivativos são instrumentos que, como a fissão atômica ou um simples automóvel, são mais ou menos úteis ou arriscados de acordo com o conhecimento e índole de quem os usa; errado por princípio é usar dinheiro público para resgatar empresas que os utilizaram de forma irresponsável.
- Os congressistas e os juízes saem relativamente ilesos da história. Cabe perguntar onde eles estavam enquanto as fraudes, supostamente dentro da lei, eram construídas. Ou porque, passado o tempo, tanta conivência com acontecimentos que parecem ter fugido da lei. Por outro lado, os acadêmicos são massacrados: John Y. Campbell (Harvard), Glenn Hubbard (Columbia) e Martin Feldstein (Harvard) passam vergonha, menos por qualquer aspecto relacionado às suas pesquisas e opiniões e mais pela promiscuidade em suas relações com o governo e o mundo corporativo. É curioso também notar a aura de autoridade e relativa competência dos franceses Christine Lagarde e Dominique Strauss-Kahn, como se o sistema financeiro francês fosse um exemplo de solidez e imunidade à fraudes e o FMI tivesse agido decisivamente para evitar a crise.
Tudo isso considerado, o filme me deixou com uma certa sensação de desespero, e deveria fazer o mesmo com quem ainda considera os EUA como o exemplo melhor acabado de dinamismo e triunfo do liberalismo. Há tempos a força política e econômica do status quo não era tão grande, e chegamos a uma situação em que o indicador mais importante da 'saúde' da economia é a pontuação do índice de ações. Não há quem pense em recuperar o dinamismo perdido nos anos em que se assistia, sem maiores preocupações, aos preços dos imóveis e outros ativos subirem, criando uma riqueza tão ilusória que acabou em um estoque de dívida colossal, ruim para quem tentou surfar a bolha e ainda pior para os prudentes e mais pobres, que, como todos os contribuintes, arcaram com os seus custos. Trabalho Interno mostra a faceta mais evidente dessa sociedade; ainda há tantas outras para serem exploradas pelos documentaristas.
Eu pensei em escrever mais alguns parágrafos sobre o crescimento do sistema financeiro nas últimas décadas, mas isso tem pouco a ver com o filme e vai ficar para um próximo texto. Trabalho Interno é um bom filme e tem um papel de divulgação muito importante, mas, no fim das contas, contribui muito pouco para a história da crise e seu entendimento. Serviu para levar um Oscar e fazer o grande público saber um pouco mais do festival de conflitos de interesse que virou a relação entre Wall Street, a academia e o governo americano, mas, creio, vai ter pouco valor para os historiadores do futuro. Se algum cineasta ler isso aqui (o que deve ter a mesma probabilidade do partido novo do Kassab ser um divisor de águas na política brasileira), uma boa pedida seria fazer um filme tomando por base o livro The Big Short, do Michael Lewis, uma história de relativamente poucos personagens e muito ilustrativa do que aconteceu.
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10 comentários:
curiosidade de um curioso:
o efeito líquido total de uma bolha, sobre os AGREGADOS econômicos (PIB), é negativo?
ou o quantum de riqueza - digamos - ilusória q ela cria é justamente (e exatamente) a gordura queimada qdo estoura?
(se é q existe base empírica para esse tipo de avaliaçõa)
A pergunta é tão boa quanto difícil de ser respondida. Se imaginarmos uma bolha em um ativo de pouca importância, o estrago do seu estouro é limitado aos compradores do ativo em questão - sendo que há uma correspondência no lucro de quem conseguiu vender o ativo a um preço maior do que adquiriu. O efeito na "riqueza" agregada é nulo.
Uma bolha de maiores proporções amplifica esses efeitos, sendo que, geralmente, os maiores perdedores são pequenos poupadores (com menos informação e atraídos por preços mais altos). Isso pode gerar uma queda no consumo e nos investimentos, que é o que, na prática, afeta o crescimento do PIB.
É curioso ver que o estouro de u ma bolha, em teoria, não afeta os componentes de crescimento de longo prazo: capital, trabalho, produtividade. Ao invés disso, uma bolha é uma evidência ou do fim de um ciclo de dinheiro barato e capital mal alocado, seja ele de curta ou longa duração. No caso dos EUA, a bolha imobiliária parece ter escondido por algum tempo uma perda de dinamismo da economia como um todo, e isso deve se manifestar em anos de crescimento baixo para compensar a ilusão de riqueza dos anos anteriores e o capital mal alocado por conta disso.
ou seja, o estouro de bolhas é ruim no curto prazo (ranger de dentes e choro pro conta de brutal realocação de riqueza + eliminação da riqueza "ilusória"), mas bom (ou necessário, ou inevitável) no longo prazo...
Necessário e inevitável, sim. Bom já é muito discutível, e aí há quem diga que existem bolhas e bolhas: algumas deixam um legado que é útil para o crescimento futuro (e.g. investimento em infraestrutura); outras perpetuam distorções e levam a mais adiamento de problemas estruturais (como é o caso desta, acredito).
Podemos dizer então que a bolha na verdade causa somente uma re-distribuição de riqueza, e que esta normalmente aumenta ainda mais a desigualdade. O dinheiro não some, ele somente muda de mãos.
Podemos dizer então que a bolha na verdade causa somente uma re-distribuição de riqueza, e que esta normalmente aumenta ainda mais a desigualdade. O dinheiro não some, ele somente muda de mãos.
Acho que dá para estender para essa conclusão, sim, se pensarmos que só quem destrói / cria dinheiro são os bancos centrais. Os poréns são que: i) bolhas podem gerar grandes alocações ineficientes de capital, pelas quais a economia vai pagar ao longo do tempo e ii) os bancos centrais usam expansão da base monetária para compensar os efeitos do estouro da bolha, o que, ao menos em teoria, destrói parte do poder de compra da moeda.
topei com isso aqui:
http://people.hofstra.edu/jean-paul_rodrigue/jpr_blogs.html
achei interessante o comentário sobre a questão de a bolha ser ou não um "zero sum game".
Muito bom, Frank. Valeu!
Procrastination is the thief of time.
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