terça-feira, 8 de junho de 2010

O fim do euro (pelo menos como o conhecemos)

(Aviso: este texto é longo e trata de macroeconomia. Pode, portanto, causar sonolência. Recomenda-se não ler antes de dirigir ou operar máquinas pesadas.)

Aos fãs da idéia da União Européia (sei que não são poucos), lamento informar: o euro, como o conhecemos, está próximo do fim. Quem o está destruindo não são os “lobos” especuladores, e sim os países que por algum tempo foram felizes com uma nova moeda forte, mas se esqueceram de cumprir com uma de suas partes no arranjo fundamental para que uma união monetária funcione: a disciplina fiscal.

Para entender, vamos imaginar o caso do Brasil, que é um país continental, de muita disparidade entre suas regiões. Caso seus estados tivessem autonomia para emitir moeda e dívida, seria de se esperar grandes diferenças entre as respectivas taxas de câmbio (o Rio de Janeiro, grande “exportador” de petróleo, provavelmente teria um câmbio mais valorizado que Roraima) e custos da dívida (em parte por conta da moeda fraca ou forte, mas também porque alguns estados são mais poupadores ou gastadores e, por conseqüência, melhores devedores). Como o governo central tem o monopólio de emissão de moeda e de dívida (os estados e municípios foram proibidos de emitir dívida própria em 1993), o real e a dívida pública brasileira são expressão da saúde financeira do país inteiro: é o banco central que decide a quantidade de moeda em circulação, olhando para a inflação agregada no país; e o tesouro é responsável, em última instância, por cobrir o buraco no orçamento dos estados deficitários. Pode-se imaginar que a política monetária que funciona para São Paulo não é ideal para a Paraíba e diversos “subsídios” entre os estados, até pensar que eles não são “justos”, mas o sistema funciona, no fundo, porque há uma unidade política e social: antes de sermos paulistas, mineiros ou potiguares, somos brasileiros, e assim compartilhamos algo de nossos destinos.

No caso do euro, os países que o adotaram concordaram em abrir mão da autonomia das suas políticas monetárias: a moeda única é de responsabilidade do Banco Central Europeu, que fixa os juros e determina a quantidade de moeda em circulação. Quando um país entra na zona monetária, concorda em fixar uma taxa de câmbio que vai converter sua antiga moeda (pesetas, liras, dracmas...) por euros. Assim, em 1998 ficou estabelecido que 1,96 marcos alemães poderiam ser trocados por um euro, assim como 200,48 escudos portugueses (ou 6,56 francos franceses, 166,39 pesetas espanholas... curiosidade: até hoje as antigas notas das moedas nacionais podem ser trocadas, nos bancos, por euros) – por conseqüência, um marco alemão passou a valer aproximadamente 102,3 escudos portugueses (200,48 / 1,96). Para que 102,3 escudos portugueses continuassem, ao longo do tempo, podendo comprar o mesmo que um marco alemão, a saúde financeira do governo português deveria passar a se parecer com a do governo alemão (a cotação do euro contra as outras moedas, por sua vez, seria uma percepção relativa da fortaleza da união monetária contra os outros países, como a taxa de câmbio real / dólar reflete o valor da moeda de todo o Brasil). E é aí que está o maior problema.

Uma das condições para a entrada de um país para a zona do euro é um compromisso de alguma austeridade fiscal. Os países passaram a trabalhar com um limite para o tamanho da dívida pública e para o seu aumento (déficit fiscal), sob pena, em última instância, de expulsão do regime cambial. No início, com a economia global em relativo bom estado, era razoável acreditar que esses limites seriam respeitados. Entretanto, bastaram dois anos de turbulência para que as fragilidades do sistema se tornassem mais evidentes: entre economias e sociedades estruturalmente tão diferentes (alguém consegue pensar em alguma semelhança entre a Alemanha e o Chipre, por exemplo?), a manutenção de uma moeda única forte requer sacrifícios que nem todos estão dispostos a fazer. Até algum ponto, os bancos dos países mais fortes achavam que era um bom negócio carregar a dívida dos países mais fracos por um pequeno excesso de rentabilidade; de algum tempo para cá, o financiamento de Grécia, Portugal e Irlanda, para ficarmos em poucos exemplos, passou a exigir taxas de juros mais altas, para compensar o risco daquelas metas fiscais serem ignoradas por anos a fio. Juros maiores, por sua vez, requerem mais capacidade de arrecadação do devedor para que o serviço da dívida seja coberto (o que é ainda mais difícil numa economia em recessão), e aí entra-se na espiral na qual estamos agora: o financiamento voluntário para alguns países deixou de existir, e agora a conta dos países “pobres” deve ser paga, em última instância, pelo contribuinte dos países “ricos” (via Banco Central Europeu e transferências dos tesouros nacionais).

Voltando ao exemplo do Brasil: não é difícil fazer com que o contribuinte de um estado financie, indiretamente, outro. No caso da Europa, não parece razoável que um operário alemão queira contribuir para que o trabalhador grego se aposente cinco anos mais novo, para usar um exemplo da moda. O contribuinte da Alemanha, antes de ser europeu, é alemão, e dificilmente vai colocar seus interesses atrás de um projeto tocado por burocratas que não necessariamente foram eleitos por ele. Por outro lado, o povo grego não deve achar razoável a contração econômica necessária para que a situação fiscal melhore e o país possa continuar no euro. As rupturas possíveis agora parecem mais claras do que nunca (há muito tempo alguns comentaristas falam delas – Anatole Kaletsky e o pessoal da GaveKal são alguns deles, deve haver tantos outros).

Imagino dois possíveis endgames para a situação: no primeiro (mais provável e menos devastador), a Grécia, seguida de outros países, resolve sair do euro e desvalorizar sua moeda. Isso torna a dívida “pagável”, com o custo de juros mais altos e uma desvalorização geral nos ativos do país. Acaba o subsídio cruzado de exportadores para importadores (via câmbio valorizado artificialmente), e a economia tem chances de se reerguer sobre bases mais realistas, enquanto a moeda única tem mais chances de sobreviver (e possivelmente terá de lidar com o risco de supervalorização). No segundo, a Alemanha ou outro país “forte” resolve não aceitar pagar a conta dos mais frágeis, deixa o euro, os membros restantes entram em um limbo e a moeda única é destruída. Acho muito remota a possibilidade de tudo continuar como está – dependeria de uma cooperação pouco usual entre países de interesses muito distintos e em situações extremas. Grandes mudanças devem aparecer na Europa em breve, com a história confirmando novamente que regimes de câmbio fixo sempre têm prazo limitado. As conseqüências não devem ser restritas à economia, mas o poder da minha bola de cristal (se é que existe) para por aqui.

2 comentários:

Anônimo disse...

Bom texto.
bem didático.
Continue postando!
Quando vai revelar onde trabalha?

Drunkeynesian disse...

Não tão cedo, acho... ficar anônimo evita muitos conflitos de interesse...