domingo, 31 de dezembro de 2017

O Mito do 'Quality Time'

Há quase 20 anos passo a virada de ano com um grupo de amigos, geralmente na praia. Este ano traduzi esse artigo do Frank Bruni para ler antes da ceia. Feliz 2018!


O Mito do ‘Quality Time’
Frank Bruni (New York Times, 5 de Setembro de 2015)


Todo verão, por muitos anos, minha família tem obedecido ao nosso ritual. Todos nós 20 – meus irmãos, meu pai, nossos companheiros, minhas sobrinhas e sobrinhos – procuramos uma casa de praia grande o bastante para caber todo o clã caótico. Nós viajamos de nossos diferentes estados e fusos horários. Nós dividimos os quartos sob tensão, tentando lembrar quem se deu bem ou mal na viagem anterior. E nós nos jogamos uns aos outros por sete dias e sete noites.

É isso: uma semana inteira. Isso é parte de um ritual que intriga muitos dos meus amigos, que apreciam proximidade familiar, mas acham que pode haver exageros. Um fim-de-semana prolongado não é suficiente? E não evitaria algumas briguinhas e simplificaria o planejamento?

A resposta para a segunda pergunta é sim, mas, para a primeira, um enfático não.

Eu costumava achar que mais curto seria melhor, e, no passado, eu chegava para essas férias na praia um dia depois ou ia embora dois dias antes, dizendo a mim mesmo que eu tinha que quando, na verdade, eu também queria – porque eu desejava meu espaço e meu silêncio, e porque eu fico cansado de me lambuzar de protetor solar e de encontrar areia em lugares estranhos. Mas, nos últimos anos, eu tenho aparecido no começo e ficado o tempo todo, e notei uma diferença.

Num período mais longo, há uma chance maior de eu estar por perto no momento preciso e aleatório quando um dos meus sobrinhos baixa a guarda e me pede um conselho sobre algo pessoal. Ou quando uma das minhas sobrinhas precisa de alguém que não seus pais para lhe dizer que ela é inteligente e bonita. Ou quando um dos meus irmãos lembra de um incidente na nossa infância que nos faz rir incontrolavelmente e, de repente, a corrente íntima e feliz do nosso amor fica muito mais apertada.

Simplesmente não há substituto real para a presença física.

Nós nos iludimos quando dizemos o contrário, quando invocamos e veneramos “quality time,” uma expressão batida com uma promessa questionável: que nós podemos planejar ocasiões de franqueza extraordinária, tramar episódios de ternura sutil, engenhar intimidade numa hora marcada.

Podemos tentar. Podemos isolar uma refeição por dia ou duas tardes por semana e livrá-las de distrações. Podemos escolher um lugar especial que encoraje relaxamento e elevação. Podemos enchê-lo de totens e frufrus – um balão para uma criança, espumante para uma esposa – que sinalizam celebração e criam um senso de sagrado.

E não há dúvida que o grau de atenção que trazemos para uma ocasião a enobrece ou a diminui. É melhor passar 15 minutos focados e atentos do que 30 totalmente distraídos.

Mas pessoas não operam no exato momento em que se espera. Pelo menos nossos humores e emoções não. Nós pedimos ajuda ocasionalmente; nós desabrochamos de forma imprevisível. O jeito mais seguro de ver as cores mais brilhantes, ou as mais escuras, é observar e esperar e estar pronto para elas.

Isso se reflete em uma mudança sobre a qual Claire Cain Miller e David Streitfeld escreveram no The Times. Eles notaram que “uma cultura de trabalho que exige que mães e pais voltem correndo para seus escritórios está começando a mudar,” e citam “políticas mais amigáveis para famílias” na Microsoft e na Netflix, que estenderam o tempo de licença que pais e mães podem tirar.

Ainda estamos por ver quantos pais e mães vão sair da rotina acelerada e se beneficiar disso, mas aqueles que o fizerem estarão decidindo que a quantidade de tempo que passam com suas crias importa tanto quanto a intensidade com que o fazem.

Eles têm sorte: muitas pessoas não são privilegiadas o bastante para poder fazer esse tipo de escolha. Minha família também tem sorte. Nós temos condições de tirar férias.

Mas nós também nos dedicamos a isso, e determinamos que o Dia de Ação de Graças não é o bastante, que o Natal passa muito rápido e que se cada um de nós quer mesmo ser parte central da vida dos outros, precisamos fazer um investimento do qual os maiores componentes são minutos, horas e dias. Assim que a nossa semana na praia deste verão acabou, nos debruçamos sobre nossos calendários e trocamos dezenas de e-mails para achar uma semana no próximo verão que todos possam tirar. Não foi fácil, mas foi essencial.

Casais vão morar juntos não porque isso é prudente economicamente. Eles entendem, conscientemente ou instintivamente, que proximidade ininterrupta é o melhor caminho para a alma de alguém; que gestos não ensaiados em momentos inesperados rendem melhores recompensas que aqueles ensaiados para um encontro marcado; que o “eu te amo” que conta mais não é sussurrado com grande cerimônia no topo de uma colina na Toscana. Não, ele escapa casualmente, espontaneamente, na seção de hortifrútis ou lavando louça, no meio do tédio e da sujeira de suas rotinas. Também é quando as confissões mais verdadeiras são feitas, quando a mágoa está mais crua e o carinho mais puro.

Eu sei como meu pai de 80 anos se sente sobre morte, religião e Deus não porque eu marquei um encontro discreto para discutir tudo isso com ele. Eu sei porque eu, por acaso, estava no banco do passageiro do carro dele quando esses pensamentos estavam na sua mente e quando, por qualquer motivo imprevisível, ele se sentiu confortável para articulá-los.

E eu sei o que ele aprecia e do que se arrepende mais no seu passado porque, além de eu ter sido pontual para as férias deste verão, eu viajei para lá com ele, para engordar nossa visita, e ele estava especialmente pensativo naquele voo.

Foi durante um almoço na casa de praia o dia que meu sobrinho mais velho falou, com franqueza e extensão incomuns, sobre suas expectativas para a faculdade, suas experiências no ensino médio – coisas que eu sempre tentei arrancar dele antes, nunca conseguindo as respostas generosas que ele me deu durante aquela refeição em particular.

Foi numa corrida na manhã seguinte que a minha sobrinha mais velha descreveu, como nunca tinha feito para mim antes, frustrações e detalhes do seu relacionamento com seus pais, suas duas irmãs e seu irmão. Por que essa informação saiu dela naquele momento, com pelicanos voando sobre nossas cabeças e suor escorrendo pelas nossas testas, não consigo dizer. Mas consigo dizer que estou ainda mais fortemente ligado a ela agora, e não por causa de algum esforço orquestrado e deliberado para testar as emoções dela. É porque eu estava presente. É porque eu estava lá.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Os livros de 2017

É aquela época do ano de novo. Aqui o que andei lendo de bom (em nenhuma ordem particular):

Ficção

‘Sweet Tooth’, Ian McEwan. A Guerra Fria encontra a literatura na Inglaterra dos anos 1970. Ainda estou pra ler um livro ruim do McEwan.

‘El Aleph’, Jorge Luis Borges. Tem El Zahir, El Aleph e mais alguns outros contos pra você ler em 20 minutos e seguir pensando neles por 20 anos.

‘The Plot Against America’, Philip Roth. É ótimo e tem todas aquelas analogias com a eleição do Trump que você está cansado de ouvir.

‘Afirma Pereira’, Antonio Tabucchi. Obra-prima de concisão e erudição, a briga solitária de um jornalista contra o fascismo português.

‘Os Cus de Judas’, António Lobo Antunes. Mais sobre a vida sob o salazarismo, aqui do ponto de vista de um médico dado a digressões longas e originais trabalhando em Angola durante a guerra colonial.

‘O Homem que Amava os Cachorros’, Leonardo Padura. Grande romance histórico e crítica devastadora ao stalinismo.

‘Half of a Yellow Sun’, Chimamanda Ngozi Adichie. Novelona (no melhor dos sentidos) ambientada na Guerra de Biafra. Não perca tempo com o filme, ruinzinho, ruinzinho. (Acabei de descobrir que essa guerra parou pra um amistoso do Santos de Pelé contra uma tal Seleção do Meio Oeste, história fantástica.)

‘Bone’, Yrsa Daley-Ward. Poesia para a minha geração (que não gosta muito de poesia, acho).

‘Laços’, Domenico Starnone. Não há uma linha desperdiçada nessa grande pequena novela. Junto com o Lobo Antunes, foi o que mais gostei de ler no ano.


Não-ficção

‘Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies’, Jared Diamond. Uma busca original e erudita pela causa-raiz do desenvolvimento econômico. O tamanho intimida, mas é uma leitura fluente e prazerosa.

‘A Ditadura Acabada’, Elio Gaspari. Esperado último livro da série, é generoso demais com o governo no desastre econômico do fim do “milagre”, mas vale a leitura.

‘A Segunda Mais Antiga Profissão do Mundo’, Paulo Francis. Sempre divertido rever os chutes e acertos de um dos nossos maiores tudólogos.

‘Straw Dogs: Thoughts on Humans and Other Animals’, John Gray. Pra ler na praia, num dia de sol, com um mojito na mão (em qualquer outra situação pode levar à depressão e pensamentos suicidas, epa, peraí, por que você está entrando no mar com uma bigorna amarrada no tornozelo?).

‘Traffic: Why We Drive the Way We Do’, Tom Vanderbilt. Enorme e bem-sucedido esforço para apresentar de forma atrativa os resultados de décadas de pesquisa acadêmica sobre um assunto que tanto nos afeta.

‘Representantes de quem? Os (des)caminhos do seu voto da urna à Câmara dos Deputados’, Jairo Nicolau. Manual claríssimo e bem-escrito para entender os desdobramentos do voto proporcional no Brasil. Merecia uma edição atualizada em 2018 incorporando as mudanças da última rodada de reforma política.

‘Pavões Misteriosos – 1973-1984: A explosão da música pop no Brasil”, André Barcinski. As histórias e personagens, famosos e anônimos, de um período de grande criatividade e cara de pau da brilhante música feita por aqui.

‘Better Presentations: A Guide for Scholars, Researchers, and Wonks’, Jonathan Schwabish.
Excelente para quem, como eu, gasta um tempo inconfessável trabalhando com o PowerPoint e apresentando material técnico.

‘Fifty Inventions That Shaped the Modern Economy’, Tim Harford. Harford é quem melhor leva Economia às massas, segue em grande forma.

‘China Airborne’, James Fallows. A indústria aeronáutica chinesa como ponto de partida para falar sobre desenvolvimento, instituições e, claro, o maior dos “grandes enriquecimentos” da história.

‘1988: Segredos da Constituinte’, Luiz Maklouf Carvalho. Ainda quero ler uma narrativa bem contada da constituinte, mas esse livro de entrevistas é muito informativo e divertido.

'Os Pecados Secretos da Economia', Deirdre McCloskey. A edição ficou linda e a tradução é ótima, até compensam a picaretagem do cara que fez as notas.


Quadrinhos

‘Trinity: A Graphic History of the First Atomic Bomb’, Jonathan Fetter-Vorm. Como diz o título, uma história ilustrada do Projeto Manhattan, com vários diálogos históricos reproduzidos.

 ‘Marbles: Mania, Depression, Michelangelo, and Me’, Ellen Forney. Um relato instrutivo, honesto  e sensível sobre a relação entre transtorno bipolar e arte.

 ‘O Árabe do Futuro 3 – Uma Juventude no Oriente Médio (1985-1987)’, Riad Sattouf. Presença frequente por aqui, a série continua ótima.

Outros

‘This Book Is a Planetarium… And Other Extraordinary Pop-Up Contraptions’, Kelli Anderson. Presente de Natal para a pessoa mais curiosa e inteligente da casa (o pequeno Drunk Jr., claro).



Um ótimo final de ano e um 2018 ainda melhor para todos!

sábado, 25 de novembro de 2017

O que os estados brasileiros exportam, afinal?

O mapa abaixo, que coloquei no Twitter esta semana, gerou muita curiosidade. Aqui o gabarito de algumas das perguntas que apareceram por lá:



  • O Acre exporta para o Peru madeira (30% do total) algo na categoria de cocos, castanha do Brasil e castanha de caju (27%).
  • Roraima exporta arroz e açúcar para a Venezuela. Jan Tinbergen e discípulos devem ter algo a dizer dos casos de Acre e Roraima, também.
  • 99% do que o Maranhão exporta para o Canadá é óxido de alumínio e derivados (como coríndon).
  • Rondônia exporta carne bovina para Hong Kong.
  • Sergipe, nos últimos 12 meses, exportou mais de 21 mil toneladas de suco de frutas para a Holanda.
  • Nesse mesmo período, Amazonas exportou quase US$ 100 milhões em motocicletas para a Argentina.
  • Desde outubro passado, Pernambuco (provavelmente a fábrica da FCA) exportou mais de meio bilhão de reais em automóveis para a Argentina.
  • O Distrito Federal exporta para o mundo, além de táticas de corrupção e dinheiro para ser lavado, soja e carne de frango.

domingo, 12 de novembro de 2017

Custo de vida e renda no Brasil: ganhe em Brasília, gaste no Piauí

Semana passada o FMI publicou esse paper do Carlos Góes e Izabela Karpowicz que, entre outras coisas, estimou diferenças de poder de compra entre os estados brasileiros (vale ler o trabalho inteiro, que faz ótimo uso dos microdados da PNAD). Com os dados, o Thomas Conti fez o mapa abaixo, que ganhou certa fama nas redes:

Pegando carona na fama do Thomas, cruzei os dados de poder de compra com os de PIB per capita para tentar medir a "affordability", nada mais do que a relação entre renda e custo de vida. Deu nesses gráficos (clique para aumentar):



No primeiro gráfico, as médias para cada variável define quatro quadrantes: os estados mais caros, com renda abaixo da média (pobre Amapá), estados caros, mas relativamente ricos (SP, RJ e DF, sobretudo), estados relativamente ricos e baratos (por esse critério, o melhor lugar do Brasil para se morar é o Espírito Santo) e os estados relativamente pobres e baratos. Neste grupo, há grande variação de custo de vida -- para uma renda parecida, o Piauí é muito mais barato que Rondônia, e Pernambuco é bem mais caro que os vizinhos Alagoas e Paraíba. Ah, e na média o efeito Balassa-Samuelson funciona para os dados (não esqueça de cortar o cabelo quando for ao Piauí, diria o mestre Jeffrey Frankel).

No segundo, tentei montar um índice de "affordability", dividindo o PIB estadual per capita pelo índice de custo de vida e indexando a 100, a média nacional. Aqui, o PIB per capita domina o efeito do custo de vida, e, no geral, os estados mais ricos (e caros) parecem mais atrativos.

Em resumo: trabalhe em Brasília e gaste no Piauí -- ou mude-se para o Espírito Santo.

P.S. Enquanto preparava esse post, o Thomas, com os mesmos dados, fez esse gráfico, muito mais sofisticado:

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Os (enormes) subsídios para crédito direcionado

Publicado originalmente no Acredito, em 23 de maio.

Em meio à polêmica da JBS, empresa que se beneficiou da ajuda do BNDES, vale aprofundarmos o debate sobre a alocação de crédito subsidiado no país.

Um recente trabalho para discussão do Banco Mundial estimou que, em 2015, o Brasil gastou 1,5% do PIB (R$ 86,5 bilhões) em subsídios para crédito direcionado. Isso corresponde a mais de 80% de todo o resultado (déficit) fiscal primário naquele ano, ou a três anos de Bolsa Família.
Além do valor em si, chama a atenção a potencial mal alocação dos recursos: os autores avaliam que empresas que tipicamente se beneficiam de juros subsidiados são grandes, antigas, não usam o crédito barato para investir mais e podem se beneficiar de “arbitragem financeira” -- simplesmente aplicando os recursos recebidos a taxas maiores no mercado financeiro, sem risco.

Como tem sido usado no Brasil, o crédito subsidiado é uma barreira à igualdade de oportunidades e ao crescimento econômico. O alto volume de recursos direcionados aumenta as taxas de juros de mercado, inibindo empreendedorismo, e pode contribuir para o aumento da desigualdade de renda. A solução, na nossa visão, não passa necessariamente pela eliminação imediata de todos os subsídios, mas começa por uma prestação de contas mais clara de custos e benefícios. A Instituição Fiscal Independente, criada no final de 2016, pode ter um papel importante na padronização e disseminação desse tipo de informações.

Clique para aumentar o gráfico.


The reports of my death have been grossly exaggerated

Mas, vergonhosamente, eu ainda não havia postado nada no ano da graça de 2017.

Continuo não conseguindo produzir material original pra colocar aqui, mas vou aproveitar para requentar algumas coisas que escrevi para o Acredito e pro trabalho.