sábado, 19 de abril de 2014

Thomas Piketty e o espírito do tempo

Piketty ontem na Harvard Kennedy School (foto roubada da Masoomeh Khandan)

Desperto o blog da sonolência dos últimos meses para falar sobre o que todo mundo tem falado (o mundo como esse estranho lugar onde as pessoas debatem conceitos abstratos ligados a dinheiro e produção): o novo livro de Thomas Piketty, "Capital in the 21st Century", que deve roubar  de "Why Nations Fail" e "This Time Is Different" o título de obra de economia menos lida (qual o público para um trabalho acadêmico de mais de 600 páginas, traduzido do Francês, por mais que escrito de forma acessível e bem editado? Admitindo que fica bonito na estante, "CAPITAL" em letronas vermelhas na lombada) e mais comentada deste século.

Como parte do tour de lançamento da obra nos EUA, que o New York Times noticiou como "Economist Receives Rock Star Treatment", ontem o autor parou por aqui, mais especificamente do lado da sala onde eu costumo ter a maioria das minhas aulas. Cheguei meia hora antes, com a intenção de olhar o movimento e comer algo antes de sentar; acabei, alertado por um amigo, pegando um dos últimos lugares disponíveis. A sala foi enchendo, enchendo, enchendo, enchendo, e, quando Piketty chegou, poucos minutos atrasado, havia gente em pé, a um metro da porta, esticando o pescoço para tentar ver e ouvir qualquer coisa. De fato, tratamento de rock star.

Piketty foi apresentado por Larry Summers como o autor do livro de economia que "causou mais sensação do que qualquer outro em duas décadas, abraçando uma vasta rede de informação e experiência." A tal rede de informação foi construída em um projeto de 20 anos de pesquisa que juntou dados de declarações de renda de mais de 20 países, com séries começando, em alguns casos, no fim do século XVIII. Depois de dividir o mérito dessa base de dados com um grande time de pesquisadores, Piketty logo disse que o objetivo principal do livro é difundir o conhecimento sobre a evolução da riqueza no mundo (zhe knowledge ov evolution ov wealth) e que as recomendações de política econômica são secundárias (mais sobre isso adiante). Sua intenção era atualizar o famoso trabalho de Simon Kuznets, um dos pais do uso de métodos empíricos na economia, agora com mais dados de mais países e poder de computação infinitamente maior.

Ele divide os principais resultados da pesquisa em três pontos:

1. O retorno de uma sociedade patrimonial e baseada em riqueza—a desigualdade de renda e riqueza nos EUA e Europa parece ter voltado aos patamares do início do século XX, no que Paul Krugman, em sua resenha de "Capital in the 21st Century" para a New York Review of Books chamou de "uma nova era dourada." Isso já havia sido adiantado no ano passado, quando Emmanuel Saez (coautor frequente de Piketty) publicou uma atualização para o clássico "Income Inequality in the United States, 1913—1988", de 2003.

2. O futuro da concentração de riqueza—aqui entra a inequação que tem sido repetida como se fosse a nova fórmula da teoria da relatividade. Se r > g (o retorno para o capital for maior do que a taxa de crescimento da economia), como parece ocorrer na maior parte do tempo, a riqueza tende a se concentrar. Entre 1987 e 2013, pelas estimativas de Piketty, a riqueza dos bilionários cresceu a 6,8% anuais, enquanto a mesma taxa para a riqueza média foi de 2,1%.

3. O tratamento da desigualdade nos Estados Unidos—ele comenta que, em 1919, Irving Fisher era presidente da Associação Americana de Economia e demonstrava preocupação com a crescente desigualdade, qualificando-a como uma "ameaça para a democracia americana." Hoje, qualquer tentativa de aumento em impostos progressivos é rotulada como "anti-liberdade" no melhor dos casos e "fascista" no pior. Piketty mostra o gráfico com evolução da alíquota de imposto de renda para a faixa mais altas, que chegou a 90% nos EUA do pós-II Guerra e foi exportada para os derrotados Alemanha e Japão.

Terminada a apresentação, Larry Summers foi o primeiro a perguntar, sugerindo que talvez a desigualdade atual não seja produto do sistema de impostos ou da remuneração do estoque de capital, mas do fato de que "há mais empreendedores, mais Bill Gates e Mark Zuckerberg."  Piketty respondeu, de bate-pronto, que empreendedorismo e inovação não começaram ontem, e que inventores de tecnologias muito mais disruptivas do que o WhatsApp não chegaram perto de acumular os bilhões de dólares acumulados pelos magnatas de hoje. Summers parece ter ficado irritado e aproveitou o resto do tempo na sala para atualizar o sono.

Outro figurão na plateia, Michael Ignatieff, perguntou se não era preciso fazer uma diferenciação normativa entre os tipos de desigualdade (lembrou muito, mas sem citar, a ideia de categorias que Daniel Markovits, de Yale, delineou—vejam o último slide desta apresentação que fiz há um tempinho). Piketty concordou, mas disse haver um trade-off entre esse tipo de diferenciação e manter o código tributário simples e não-intrusivo.
͏

Thomas Piketty é o primeiro a admitir que as aplicações para política pública não são o forte do seu trabalho. Um imposto global sobre fortunas parece altamente implausível, e os efeitos do aumento da desigualdade no crescimento estão longe de ser claros—ele argumenta que concentração de riqueza provavelmente reduz crescimento, mas tanto a teoria como a evidência empírica estão longe de apontarem de forma inequívoca para a confirmação dessa hipótese. É possível que desigualdade seja apenas um sintoma de um mal do capitalismo que ainda não foi identificado, mas que parece também ser responsável por baixo dinamismo do mercado de trabalho e uma recuperação lenta da crise de 2007/2008. De qualquer forma, as razões para combater desigualdade continuam sendo mais morais do que contidas no domínio da economia.

Por que, então, todo o barulho em torno do livro? Aqui, apelo para o pensamento atribuído a Victor Hugo que diz que não há nada mais poderoso do que uma ideia cujo tempo chegou. Desde que a crise foi controlada, governos e progressistas parecem buscar uma nova agenda de política econômica. Atacar a desigualdade parece conveniente, tanto numa tentativa de estender a influência do governo sobre a economia quanto pelo forte apelo moral. O problema é o costumeiro às boas intenções: se um mundo mais igual é preferível, os meios para atingir esse objetivo estão cercados de obscuridade e consequências indesejadas. Aumentar impostos talvez seja a única política factível, mas criará distorções e não necessariamente atingirá os alvos desejados (vide a experiência recente de François Hollande na terra de Piketty). Por outro lado, outras propostas que mais provavelmente contribuiriam mais para a diminuição da desigualdade global (que, sujeita a pouco debate, é muito maior entre países do que dentro de um determinado país), como leis de imigração mais flexíveis, passam longe do debate.

Escrevi tudo isso sem ter lido mais do que as orelhas e a contracapa do livro, que pode ou não surpreender quando o fizer, mas arrisco uma conclusão: "Capital in the 21st Century" é uma obra de pesquisa empírica de ponta, resultado de um trabalho que leva nosso entendimento sobre riqueza e desigualdade para o ponto mais alto da história. Piketty, porém, não é o novo Marx ou Keynes (ou nem mesmo o salvador da economia política no século XXI): é brilhante, estava no lugar certo na hora certa, mas sua obra e suas conclusões ainda vão ter que sobreviver a vários testes de realidade para que a aura de profeta se justifique. O lado positivo é que ele parece saber disso, e deve continuar seu excelente trabalho, agora como improvável herói de um ramo do conhecimento que, ao menos aos olhos do público geral, andava a procura de uma figura sobrehumana.

18 comentários:

Marcelo Manzano disse...

De pleno acordo. Neste feriado de Pascoa mergulhei na leitura do Capital do Piketty e chego às mesmas conclusões. O maior mérito talvez seja o de reunir uma volumosa gama de dados para afirmar algo que há muito os teóricos heréticos já diziam: que no capitalismo não há automatismo que garanta um futuro harmônico. E,a julgar pela reação do mainstream, parece que há mais sensibilidade em relação a esse monumental esforço de investigação empírica.

Anônimo disse...

Que acha dessa resenha aqui?

http://www.dissentmagazine.org/article/kapital-for-the-twenty-first-century

Concorda com as ideias?

Anônimo disse...

Pergunta de um semi-analfabeto: caso a crise do subprime desse início a uma ruptura do sistema financeiro, com a montanha de ativos mobiliários valendo pó, não haveria no médio prazo uma redução da desigualdade? Seria a reversão a media da acumulação.
Maradona

Anônimo disse...

Resumindo... o livro tem um bom título. Pensando bem... nem isso.

John Pierpont Morgan disse...

Quanto ao livro, lê-lo-ei.

Quanto ao secondo anom...

O capitalismo é darwinista, desconta primeiro nos mais fracos. Nesse caso as desigualdades ainda pioram pois as condições de sucesso ficam ainda mais assimétricas.

Governo sempre amamentam os ricos com o leite dos pobres...(p/ capitalismo e socialismo isso é válido)

Paula disse...

otima analise.

descordo apenas de um ponto. desigualdade esta longe de ser uma questao apenas moral. sempre existira um certo nivel de desigualdade e isso eh obviamente natural e saudavel. mas os niveis de desigualdade que vemos num pais como o Brasil (por exemplo) eh cruel e consequentemente eh um tema de sobrevivencia, muito antes de ser um tema de moral. os ricos se armam, se blindam, constroem muros para se defender e os pobres se armam pois eh uma das opcoes mais atrativas diante da falta de oportunidade.

Portanto, caso se pudesse dizer que "chegou o tempo da ideia" no Brasil por exemplo (que eu nao acho que seja o caso infelizmente), ela se daria porque as pessoas sentem na pele que todos saem perdendo com a desigualdade extrema.
nos estados unidos, em menor grau, pode-se seguir a mesma logica. um pais cheio de pobres atrapalhando a vida dos ricos, alem de talentos desperdicados. nao nego que talvez o momento politico tambem seja favoravel. mas eh favoravel com mais do que uma consciencia moral, mas tambem uma consciencia de um nexo causal entre coletividade e individualidade. o ser humano nao faz nada por questoes meramente morais.

luciano disse...

acho que era a isso que o pessoal se referia quando disse que no estadão você virou "comentarista de elevador". esse sim é um puta post rs.

Anônimo disse...

como vc ainda não teve tempo de ler o livro e o assunto aqui tá mais para resenhas do livro do que o próprio livro.
para diversão geral da nação, sugiro uma rápida olhadela nas reviews do livro na amazon.
tá simplesmente sensacional a rodrigoconstantinação dos comentários: http://www.amazon.com/Capital-Twenty-First-Century-Thomas-Piketty/product-reviews/067443000X/ref=cm_cr_pr_hist_1?ie=UTF8&filterBy=addOneStar&showViewpoints=0&sortBy=bySubmissionDateDescending

o meu favorito até agora é o que diz:
"Can't beleive americans buy this marxists cancer,
Total socialists garbage.. Can't understand why anyone would want to buy this trash & make this fool rich.. He belongs in the heap of child molesters in my book."

Anônimo disse...

OOOooooo oo Drunk voltooooouuu
ooo drunk voltoooooouuu

Agora é ler o máximo possível desse estudo, obrigado.

Anônimo disse...

Engraçado é o número de conclusões teóricas que você tirou "sem ter lido mais do que as orelhas e a contracapa do livro"

As evidências de crescimento do capital financeiro, monopólios, concentração de capital e desigualdade são gritantes na história. E desigualdade é ruim para o desenvolvimento econômico de um país como conhecido por todos, e agora empiricamente constatado, para o crescimento também. A política norte americana está cada vez mais sendo sufocada pelo capital acumulado de grandes bancos e instituições financeiras, que representam uma parcela ridiculamente pequena da população.

Anônimo disse...

Filhote Anônimo, uma coisa que o Piketty faz questão de constatar é que não sabemos o efeito da desigualdade no crescimento através de evidência empírica, não há evidência sólida. O que ele trata em essencial, se não me engano, é de um update do Kusnetz, de que a história não é bonitinha tal que com o crescimento dos níveis de renda eventualmente teremos menor desigualdade, a curvinha em U invertido. Desigualdade pode crescer indefinidamente e, ainda, ele nem acredita em um à lá Marx, via taxa declinante do lucro.

Existem teorias de que a desigualdade econômica implica na captura das instituições democráticas por elites influentes, o que pode, naturalmente, implicar em menor crescimento e outras perdas de bem estar (pela teoria), mas não existe uma evidência sólida (empírica), pelo menos para o efeito sobre o crescimento.

Anônimo disse...

em um colapso à la Marx*

Anônimo disse...

Filhote boleteiro...

Tegucigalpo-me de falácias por savant incógnito. Aliás na penumbra nefelibata de vossa mercê comungo o resuicídio de uma bába rotschildiaca...

Cuida-te, potchemu a vida lhe procura kantiana...

Lutesse, a huna

Anônimo disse...

O mundo desenvolvido luta pelo pós-capitalismo. Enquanto isso, nós, na selva populista, lutamos pelo pós-marxismo ainda. Os economistas brasileiros do governo devem estar doidos para alguém resenhar o livro para justificar o que eles sempre berraram: o capitalismo é excludente e o financismo cristaliza desigualdades. Cadê o capitalismo para ser reformado?
DantaS

Anônimo disse...

Agora se querem saber realmente do que trata o livro vejam lá no Mises Brasil. Mataram a pau.

Fernanda Régia disse...

Muito bom esse seu post. Viu as duas matérias que fizeram dele na Piauí deste mês? Estão muito boas também. Parabéns

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-92/tribuna-livre-da-luta-de-classes-ii/piketty-e-nos

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-92/tribuna-livre-da-luta-de-classes/o-homem-capital

Anônimo disse...

Melhor e mais equilibrado post que eu li sobre o Piketty, parabéns!

Anônimo disse...

O livro dele é um besteirol do início ao fim.

Ou nós defenestramos a esquerda do poder ou ela escravizará o mundo inteiro através dos Estados.