--É enorme a ignorância quanto à organização e funcionamento de um banco grande. Para esclarecer minimamente: primeiro, há várias áreas que empregam economistas, cujas opiniões não necessariamente coincidem. Da mesma forma, a opinião corporativa (o que "o banco" pensa) pode ser bastante distinta do que é passado aos clientes. Parece confuso, mas é um jeito de evitar conflitos de interesse e evitar que o banco revele sua estratégia.
De forma mais concreta: os bancos tipicamente têm um economista-chefe, que é o responsável pela área de pesquisa econômica. Geralmente é quem faz as projeções "oficiais" para as variáveis macroeconômicas e é o economista com o qual o público geralmente associa a instituição. Esse economista e sua equipe atendem, na maior parte do tempo, os clientes institucionais do banco, que têm negócios com a tesouraria, a corretora e as áreas de relacionamento com empresas.
Outras áreas de negócios têm seus próprios economistas, como a gestão de recursos, private banking e varejo. Esses atendem suas respectivas áreas e, de novo, podem ter opiniões divergentes das do economista-chefe. Sua função é orientar os clientes para que tomem melhores decisões de investimento com base no que acham que vai acontecer com o cenário econômico.
Curiosamente, os economistas mais importantes para a instituição não são todos esses, e sim os que atendem a tesouraria (há casos em que a equipe do economista-chefe é a mesma que atende a tesouraria, porém), que é a área que opera com o capital próprio do banco . Esses muito raramente publicam opiniões, mas são os que realmente influenciam como o banco vai alocar seus recursos e especular. Ainda mais importante é o comitê de ativos e passivos, que recebe opiniões de diversos economistas (entre eles o economista-chefe e o responsável pela tesouraria) e toma as decisões mais estratégicas, levando ou não em conta o que ouve. Por cima disso tudo estão os acionistas, representados pelos executivos. No caso do Santander, o capital é relativamente pulverizado, mas a família Botín ainda parece ter peso enorme no direcionamento do grupo.
--Dentro da instituição há uma hierarquia informal de prestígio e relevância. Com todo o respeito aos profisionais envolvidos, o responsável por escrever a nota que gerou toda a polêmica está muito longe (na verdade, isolado—pelo bom motivo, mencionado acima, de tentar evitar conflitos de interesse e pela distância hierárquica até os altos comitês) das principais decisões do banco e de uma virtual "opinião oficial" da companhia.
--A probabilidade de uma análise que é distribuída para um segmento do varejo ter qualquer efeito nos mercados é bem próxima de zero. Daí o ridículo de se comparar a situação a episódios passados que envolvem declarações do George Soros ou achar que há qualquer tentativa de influenciar no resultado das eleições.
--O tamanho do barulho por, efetivamente, quase nada, é muito mais interessante do que a nota em si. Algumas coisas para pensar:
- Como a necessidade da imprensa de, todo dia, criar manchetes que geram repercussão acaba distorcendo a importância relativa de notícias e cria factoides;
- A enorme insegurança do PT e do governo—mesmo depois de 12 anos no poder, ainda parecem ter necessidade de mostrar que o mercado financeiro não tem porque temê-los;
- A grande (e assustadora) mobilização da máquina de propaganda e relações públicas do governo para abafar uma opinião que, se ignorada, não teria nenhuma consequência prática;
- A ridícula ideia de que, entre as prioridades de um governo, tem que estar "agradar o mercado", e partindo daí, numa distorção em cima da distorção, concluir que o desempenho da bolsa ou do câmbio são boas métricas de sucesso ou fracasso relativos;
- A preferência de uma grande empresa privada por agradar o governo contra defender ter uma opinião independente ou preservar seus funcionários (mais sobre isso abaixo).
--De um dos itens acima: o episódio serve também para observar como a opinião geral sobre especulação é distante da realidade (até grandes como o Elio Gaspari costuma escorregar aqui). Para alguns palpiteiros, especular é fácil e traz lucros garantidos: basta plantar um boato, comprar ou vender ativos, esperar o mercado se mover e contar o dinheiro. No mundo real, salvo em casos de manipulações (que são muito mais plausíveis na negociação de ações de uma empresa específica do que em uma classe de ativos ou do elusivo "risco-país"), os mercados frequentemente teimam em não seguir roteiros pré-determinados, e é estatisticamente impossível lucrar com informação velha—os eventuais lucros de quem tenta fazer isso são obra do acaso, e não determinados pelo sucesso de um plano. O jogo de expectativas, tão bem descrito por Keynes no capítulo 12 da Teoria Geral, é muito mais complexo e imprevisível do que normalmente se supõe; e o tipo de especulação com a qual bancos conseguem lucrar é de outra natureza.
--Quanto à reação do Santander, também há muito a ser entendido. Se partirmos da ideia básica de que a finalidade, direta ou indireta, de qualquer ação estratégica do banco é gerar lucros para os acionistas, a preferência por "cortar na carne" a defender um princípio de independência pode indicar:
--Grandes empresas têm o que pode ser visto como uma "censura interna": ao menos uma área (compliance) é responsável por verificar se as informações tornadas públicas pela companhia não violam nenhuma lei e, mais sutilmente, não vão contra diretrizes internas, que, novamente, visam proteger os lucros ou algum outro interesse corporativo. O episódio ganha uma nuance interessante se pensarmos nele como uma falha dessa área: parece relativamente claro que um relatório do tipo do que foi divulgado traz um risco de repercussão negativa e que poderia ser modificado de forma a passar exatamente o mesmo recado de forma mais sutil (isso é uma arte que qualquer economista que já trabalhou em algum banco brasileiro precisa aprender a dominar). Caso isso tivesse acontecido, a polêmica provavelmente não existiria. É bruto, cínico e abominável, mas é como o jogo é jogado (e o lambari é pescado, completaria o saudoso Luciano do Valle).
--Quanto à reação do Santander, também há muito a ser entendido. Se partirmos da ideia básica de que a finalidade, direta ou indireta, de qualquer ação estratégica do banco é gerar lucros para os acionistas, a preferência por "cortar na carne" a defender um princípio de independência pode indicar:
- Um baixo valor atribuído a tal princípio: mesmo ante uma pequena ameaça aos lucros é preferível se submeter às "regras do jogo" ditadas pelo governo. Isso, acredito, não é totalmente específico ao Santander: diz algo sobre o ambiente de negócios do Brasil e a cultura da matriz. É de se imaginar como seria vista uma interferência desse tipo nos Estados Unidos, onde liberdade de expressão é um direito quase sagrado ou, pelo menos, está seguramente acima de qualquer melindre político; ou se o controle do Santander não fosse espanhol;
- Uma real ameaça aos lucros futuros como consequência da nota do economista—esta viria, possivelmente, de alguma retaliação do governo contra a companhia caso esta não se "enquadrasse." Isso, sim, é de deixar os cabelos em pé. Minha tese (a ser desenvolvida quando eu for agraciado com o milagre do tempo livre abundante) é que o Estado brasileiro tem se tornado cada vez mais um poderoso arbitrador de lucros do setor privado: os lucros de "livre mercado" são muito baixos para atrairem investimentos, e qualquer empresa grande que opera no país depende, em alguma medida, de rent seeking—extração de lucros acima da média de mercado, mediada pelo governo. Isso é uma marca do capitalismo brasileiro, mas que parece ter se aprofundado com o PT pós-Palocci;
- Qualquer combinação desses dois extremos, claro.
--Ainda sobre o Santander, também há o que se pensar da relação do banco com o país. Foi o único grupo estrangeiro a conseguir manter relevância entre os grandes bancos de varejo, provavelmente não por acaso. Isso começou, creio, com a cartada certeira da compra do Banespa, a um valor que, na época, parecia injustificável (o lance que ganhou o leilão de privatização foi muito maior do que os dos concorrentes) mas que, em poucos anos, se provou uma pechincha e uma demonstração de cojones dos espanhois quando pouca gente acreditava que o país decolaria. Depois, em 2002, seguindo um episódio muito parecido com o recente, o banco parece ter sido dos primeiros a "fechar" com Lula: nós acreditamos na "Carta ao Povo Brasileiro" e evitamos criticar a política econômica, vocês garantem um ambiente em que consigamos operar no Brasil (esta matéria da Bloomberg conta um pouco dessa história). Tal acordo de cavalheiros (ou de capi) parece valer, com as devidas mudanças no contexto, até hoje (outro episódio ilustrativo é o que, há alguns anos, envolveu críticas a Petrobras e o mesmo Santander). Não é necessária muita criatividade maquiavélica para imaginar como poderia ser diferente, partindo da ideia do governo como arbitrador de lucros que coloquei acima somada a algum nacionalismo (mais abaixo).
--Um exercício interessante é pensar quanto do episódio é aumentado pelo Santander ser controlado por capital estrangeiro. Como seria a repercussão de exatamente o mesmo relatório feito pelo Bradesco? Ou pelo Banco do Brasil? Parece haver também um componente de nacionalismo rasteiro, exacerbado pelo clima de eleições e polarização política, onde um partido é, claramente, "amigo" do mercado e o incumbente faz questão de deixar opaca a forma de como pretende tocar a economia depois das eleições. Também a frase "o que esses espanhois, com 25% de desemprego, querem palpitar no Brasil" parece se encaixar bem na média dos discursos de líderes petistas.
--Um exercício interessante é pensar quanto do episódio é aumentado pelo Santander ser controlado por capital estrangeiro. Como seria a repercussão de exatamente o mesmo relatório feito pelo Bradesco? Ou pelo Banco do Brasil? Parece haver também um componente de nacionalismo rasteiro, exacerbado pelo clima de eleições e polarização política, onde um partido é, claramente, "amigo" do mercado e o incumbente faz questão de deixar opaca a forma de como pretende tocar a economia depois das eleições. Também a frase "o que esses espanhois, com 25% de desemprego, querem palpitar no Brasil" parece se encaixar bem na média dos discursos de líderes petistas.
--Grandes empresas têm o que pode ser visto como uma "censura interna": ao menos uma área (compliance) é responsável por verificar se as informações tornadas públicas pela companhia não violam nenhuma lei e, mais sutilmente, não vão contra diretrizes internas, que, novamente, visam proteger os lucros ou algum outro interesse corporativo. O episódio ganha uma nuance interessante se pensarmos nele como uma falha dessa área: parece relativamente claro que um relatório do tipo do que foi divulgado traz um risco de repercussão negativa e que poderia ser modificado de forma a passar exatamente o mesmo recado de forma mais sutil (isso é uma arte que qualquer economista que já trabalhou em algum banco brasileiro precisa aprender a dominar). Caso isso tivesse acontecido, a polêmica provavelmente não existiria. É bruto, cínico e abominável, mas é como o jogo é jogado (e o lambari é pescado, completaria o saudoso Luciano do Valle).
Esclarecimento (talvez) necessário: trabalhei no Santander de 2001 a 2007, e devo muito da minha carreira (não é grande coisa, mas é a que tenho) ao banco e aos colegas e amigos que encontrei por lá. Não tenho como não ser grato por isso.