terça-feira, 29 de julho de 2014

Mais uma opinião sobre o "Santandergate"

Ando pensando muito no "caso Santander", tanto pelo o que representa quanto porque muita gente me pergunta a respeito. Na preguiça de fazer um texto coerente, aí vão alguns aspectos que me chamam a atenção, em itens mais ou menos independentes:

--É enorme a ignorância quanto à organização e funcionamento de um banco grande. Para esclarecer minimamente: primeiro, há várias áreas que empregam economistas, cujas opiniões não necessariamente coincidem. Da mesma forma, a opinião corporativa (o que "o banco" pensa) pode ser bastante distinta do que é passado aos clientes. Parece confuso, mas é um jeito de evitar conflitos de interesse e evitar que o banco revele sua estratégia.

De forma mais concreta: os bancos tipicamente têm um economista-chefe, que é o responsável pela área de pesquisa econômica. Geralmente é quem faz as projeções "oficiais" para as variáveis macroeconômicas e é o economista com o qual o público geralmente associa a instituição. Esse economista e sua equipe atendem, na maior parte do tempo, os clientes institucionais do banco, que têm negócios com a tesouraria, a corretora e as áreas de relacionamento com empresas.

Outras áreas de negócios têm seus próprios economistas, como a gestão de recursos, private banking e varejo. Esses atendem suas respectivas áreas e, de novo, podem ter opiniões divergentes das do economista-chefe. Sua função é orientar os clientes para que tomem melhores decisões de investimento com base no que acham que vai acontecer com o cenário econômico.

Curiosamente, os economistas mais importantes para a instituição não são todos esses, e sim os que atendem a tesouraria (há casos em que a equipe do economista-chefe é a mesma que atende a tesouraria, porém), que é a área que opera com o capital próprio do banco . Esses muito raramente publicam opiniões, mas são os que realmente influenciam como o banco vai alocar seus recursos e especular. Ainda mais importante é o comitê de ativos e passivos, que recebe opiniões de diversos economistas (entre eles o economista-chefe e o responsável pela tesouraria) e toma as decisões mais estratégicas, levando ou não em conta o que ouve. Por cima disso tudo estão os acionistas, representados pelos executivos. No caso do Santander, o capital é relativamente pulverizado, mas a família Botín ainda parece ter peso enorme no direcionamento do grupo.

--Dentro da instituição há uma hierarquia informal de prestígio e relevância. Com todo o respeito aos profisionais envolvidos, o responsável por escrever a nota que gerou toda a polêmica está muito longe (na verdade, isolado—pelo bom motivo, mencionado acima, de tentar evitar conflitos de interesse e pela distância hierárquica até os altos comitês) das principais decisões do banco e de uma virtual "opinião oficial" da companhia.

--A probabilidade de uma análise que é distribuída para um segmento do varejo ter qualquer efeito nos mercados é bem próxima de zero. Daí o ridículo de se comparar a situação a episódios passados que envolvem declarações do George Soros ou achar que há qualquer tentativa de influenciar no resultado das eleições.

--O tamanho do barulho por, efetivamente, quase nada, é muito mais interessante do que a nota em si. Algumas coisas para pensar:
  • Como a necessidade da imprensa de, todo dia, criar manchetes que geram repercussão acaba distorcendo a importância relativa de notícias e cria factoides;
  • A enorme insegurança do PT e do governo—mesmo depois de 12 anos no poder, ainda parecem ter necessidade de mostrar que o mercado financeiro não tem porque temê-los;
  • A grande (e assustadora) mobilização da máquina de propaganda e relações públicas do governo para abafar uma opinião que, se ignorada, não teria nenhuma consequência prática;
  • A ridícula ideia de que, entre as prioridades de um governo, tem que estar "agradar o mercado", e partindo daí, numa distorção em cima da distorção, concluir que o desempenho da bolsa ou do câmbio são boas métricas de sucesso ou fracasso relativos;
  • A preferência de uma grande empresa privada por agradar o governo contra defender ter uma opinião independente ou preservar seus funcionários (mais sobre isso abaixo).
--De um dos itens acima: o episódio serve também para observar como a opinião geral sobre especulação é distante da realidade (até grandes como o Elio Gaspari costuma escorregar aqui). Para alguns palpiteiros, especular é fácil e traz lucros garantidos: basta plantar um boato, comprar ou vender ativos, esperar o mercado se mover e contar o dinheiro. No mundo real, salvo em casos de manipulações (que são muito mais plausíveis na negociação de ações de uma empresa específica do que em uma classe de ativos ou do elusivo "risco-país"), os mercados frequentemente teimam em não seguir roteiros pré-determinados, e é estatisticamente impossível lucrar com informação velha—os eventuais lucros de quem tenta fazer isso são obra do acaso, e não determinados pelo sucesso de um plano. O jogo de expectativas, tão bem descrito por Keynes no capítulo 12 da Teoria Geral, é muito mais complexo e imprevisível do que normalmente se supõe; e o tipo de especulação com a qual bancos conseguem lucrar é de outra natureza.

--Quanto à reação do Santander, também há muito a ser entendido. Se partirmos da ideia básica de que a finalidade, direta ou indireta, de qualquer ação estratégica do banco é gerar lucros para os acionistas, a preferência por "cortar na carne" a defender um princípio de independência pode indicar:
  • Um baixo valor atribuído a tal princípio: mesmo ante uma pequena ameaça aos lucros é preferível se submeter às "regras do jogo" ditadas pelo governo. Isso, acredito, não é totalmente específico ao Santander: diz algo sobre o ambiente de negócios do Brasil e a cultura da matriz. É de se imaginar como seria vista uma interferência desse tipo nos Estados Unidos, onde liberdade de expressão é um direito quase sagrado ou, pelo menos, está seguramente acima de qualquer melindre político; ou se o controle do Santander não fosse espanhol;
  • Uma real ameaça aos lucros futuros como consequência da nota do economista—esta viria, possivelmente, de alguma retaliação do governo contra a companhia caso esta não se "enquadrasse." Isso, sim, é de deixar os cabelos em pé. Minha tese (a ser desenvolvida quando eu for agraciado com o milagre do tempo livre abundante) é que o Estado brasileiro tem se tornado cada vez mais um poderoso arbitrador de lucros do setor privado: os lucros de "livre mercado" são muito baixos para atrairem investimentos, e qualquer empresa grande que opera no país depende, em alguma medida, de rent seeking—extração de lucros acima da média de mercado, mediada pelo governo. Isso é uma marca do capitalismo brasileiro, mas que parece ter se aprofundado com o PT pós-Palocci;
  • Qualquer combinação desses dois extremos, claro.
--Ainda sobre o Santander, também há o que se pensar da relação do banco com o país. Foi o único grupo estrangeiro a conseguir manter relevância entre os grandes bancos de varejo, provavelmente não por acaso. Isso começou, creio, com a cartada certeira da compra do Banespa, a um valor que, na época, parecia injustificável (o lance que ganhou o leilão de privatização foi muito maior do que os dos concorrentes) mas que, em poucos anos, se provou uma pechincha e uma demonstração de cojones dos espanhois quando pouca gente acreditava que o país decolaria. Depois, em 2002, seguindo um episódio muito parecido com o recente, o banco parece ter sido dos primeiros a "fechar" com Lula: nós acreditamos na "Carta ao Povo Brasileiro" e evitamos criticar a política econômica, vocês garantem um ambiente em que consigamos operar no Brasil (esta matéria da Bloomberg conta um pouco dessa história). Tal acordo de cavalheiros (ou de capi) parece valer, com as devidas mudanças no contexto, até hoje (outro episódio ilustrativo é o que, há alguns anos, envolveu críticas a Petrobras e o mesmo Santander). Não é necessária muita criatividade maquiavélica para imaginar como poderia ser diferente, partindo da ideia do governo como arbitrador de lucros que coloquei acima somada a algum nacionalismo (mais abaixo).

--Um exercício interessante é pensar quanto do episódio é aumentado pelo Santander ser controlado por capital estrangeiro. Como seria a repercussão de exatamente o mesmo relatório feito pelo Bradesco? Ou pelo Banco do Brasil? Parece haver também um componente de nacionalismo rasteiro, exacerbado pelo clima de eleições e polarização política, onde um partido é, claramente, "amigo" do mercado e o incumbente faz questão de deixar opaca a forma de como pretende tocar a economia depois das eleições. Também a frase "o que esses espanhois, com 25% de desemprego, querem palpitar no Brasil" parece se encaixar bem na média dos discursos de líderes petistas.

--Grandes empresas têm o que pode ser visto como uma "censura interna": ao menos uma área (compliance) é responsável por verificar se as informações tornadas públicas pela companhia não violam nenhuma lei e, mais sutilmente, não vão contra diretrizes internas, que, novamente, visam proteger os lucros ou algum outro interesse corporativo. O episódio ganha uma nuance interessante se pensarmos nele como uma falha dessa área: parece relativamente claro que um relatório do tipo do que foi divulgado traz um risco de repercussão negativa e que poderia ser modificado de forma a passar exatamente o mesmo recado de forma mais sutil (isso é uma arte que qualquer economista que já trabalhou em algum banco brasileiro precisa aprender a dominar). Caso isso tivesse acontecido, a polêmica provavelmente não existiria. É bruto, cínico e abominável, mas é como o jogo é jogado (e o lambari é pescado, completaria o saudoso Luciano do Valle).


Esclarecimento (talvez) necessário: trabalhei no Santander de 2001 a 2007, e devo muito da minha carreira (não é grande coisa, mas é a que tenho) ao banco e aos colegas e amigos que encontrei por lá. Não tenho como não ser grato por isso.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Brasil 1, Alemanha 7

Dia bom pra ler isso aqui (itens 7 e 8, em especial), mas não antes da explicação definitiva baseada em economia política.


quarta-feira, 2 de julho de 2014

Salários altos, Revolução Industrial e o Brasil de hoje

"As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender" (Paulinho da Viola em Coisas do mundo, minha nêga)


Nessa pausa da Copa, aproveite o tempo para ler este paper de Peter Temin (professor emérito do MIT), uma revisão, em linguagem simples e acessível, da evolução da "Nova História Econômica" (que também atende pelo nome de cliometria.) A cliometria é produto tanto da quantificação da economia, cujo marco inicial foi a publicação do The Foundations of Economic Analysis, de Paul Samuelson, em 1947 (Samuelson tinha 32 anos, mortais—e é uma das celebridades que compartilham o dia de aniversário com este que vos escreve, como Raí e os gêmeos De Boer), quanto da evolução das técnicas econométricas, da disponibilidade de dados e do poder dos computadores para processá-los.

Temin destaca a pesquisa recente de Robert C. Allen, Hans-Joachim Voth e Nico Voigtländer (os dois últimos são coautores), que tenta responder a pergunta mais clássica de história econômica: por que a Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra no século XVIII? A narrativa que emerge desses trabalhos é fascinante. Vou tentar resumir em um parágrafo (já me perdoem pela heresia):

A Peste Negra, no século XIV, foi a mãe de todos os choques exógenos: surgiu inesperadamente e, em pouco tempo, reduziu drasticamente a oferta de mão de obra na Europa. Como consequências, para cultivar plantações cujo tamanho não mudou: i) salários subiram, ii) aumentaram os incentivos para adoção de novas tecnologias, iii) mulheres passaram a fazer parte da força de trabalho (tanto pela demanda por trabalhadores quanto pela adoção de tecnologias que diminuíram a necessidade de força física para o trabalho agrícola.) Com isso, mulheres passaram a se casar mais tarde e a ter menos filhos. A população passou a crescer mais lentamente, o que manteve a oferta de mão de obra restrita e os salários mais altos. Começava a se romper a "armadilha malthusiana": as famílias, menores, passaram a dispor de mais renda e puderam incrementar a alimentação (comer mais proteína animal), que, por sua vez, seguiu alterando o padrão da agricultura. A Revolução Industrial surge como uma tentativa de produtores reduzirem custos (já que empregar gente ficou permanentemente mais caro), alimentada pela criatividade de pequenos empreendedores que passaram a ter renda acima do nível de subsistência e tempo livre para experimentar (falta a peça do quebra-cabeça que explica o porquê da Inglaterra e não outro país europeu: energia barata, segundo Allen.)

Temin liga a história do desenvolvimento da Europa (depois replicada para outros continentes) aos problemas atuais de economia do desenvolvimento. A diferença entre a Europa pobre, pré-Revolução Industrial e a Europa rica que veio depois é similar à diferença corrente entre países pobres e países ricos: estes pagam salários maiores e usam tecnologia mais avançada. Ambos os fatores são, claro, interligados: salários mais altos justificam o investimento em tecnologia, e o aumento de produtividade sustenta níveis de renda maiores. A dificuldade está na transição: como fazê-la em (muito) menos que 400 anos e sem depender de um enorme choque exógeno. Se buscarmos respostas na história de sucesso da Europa, um bom começo passa por inclusão de mais mulheres na força de trabalho e redução da taxa de fertilidade.

Corta para o Brasil de hoje: um dos fatores mais importantes e menos alardeados da história econômica do país desde a redemocratização é uma profunda transição demográfica, que segue surpreendendo nós, pobres economistas. A taxa de fertilidade caiu muito rápido: lembro de um texto de Roberto Campos, acho que do início dos anos 1980 (estou sem o livro aqui, é um dos primeiros do Ensaios Imprudentes, salvo engano) que a listava como "o" principal problema do país. Tal problema desapareceu em pouco mais de uma geração: em 1980 esperava-se que cada mulher tivesse 4 filhos durante sua vida; hoje, menos de 2. Em mais uma geração, a população total do país deve começar a declinar, a partir de um pico de 220 milhões. A surpresa mais recente, e que ajuda a explicar porque o desemprego segue baixo mesmo após anos de atividade econômica fraca e salários subindo, é o baixo crescimento da população economicamente ativa (está bem explicado neste artigo do Marcelo Muinhos). Não só a população total cresce pouco como também, aparentemente, demora-se mais para entrar no mercado de trabalho, já que o aumento da renda das famílias permite financiar mais anos de educação e diminui a pressão para que jovens comecem a trabalhar o quanto antes.

A tragédia do Brasil recente é a produtividade, que é frequentemente ligada à adoção de tecnologia. Além dos dados, anedotas não faltam: os ônibus nas grandes cidades ainda empregam cobradores, o enorme contingente de empregadas domésticas, manobristas, garçons, frentistas, recepcionistas, porteiros... Claro que não se trata de simplesmente extinguir esse tipo de trabalho, mas criar condições para que os que se empregam nele consigam trabalhos melhores e sejam substituídos por tecnologia e processos mais avançados (exemplo: grandes prefeituras poderiam aproveitar o mercado de trabalho aquecido e criar projetos para acabar com cobradores de ônibus em poucos anos, oferecendo um pacote de alguns meses de salário e cursos de qualificação. Há, claro, uma briga necesária a ser comprada com sindicatos e afins.) É preciso criar um círculo virtuoso onde empregadores concluam que só conseguirão ser competitivos se diminuírem o uso de mão de obra, invistam em tecnologia e a mão de obra dispensada, suficientemente qualificada, consiga outros empregos, criados por novos investimentos visando um mercado consumidor maior e com mais poder aquisitivo. Mais fácil falar do que fazer, evidentemente, mas boa parte das condições de uma "revolução industrial contemporânea" estão dadas pela transição demográfica descrita acima. Essas condições precisam ser aproveitadas antes que prevaleça a história do "país que envelheceu antes de ficar rico."

A grande conquista dos governos no PT (muito ajudados por um grande choque de termos de troca entre 2002 e 2012, é sempre bom reconhecer), e que, na minha visão, é totalmente coerente com a história do partido, foi o aumento consistente dos salários reais. Como isso ocorreu com produtividade em queda, dependeu de uma grande redistribuição que está culminando, acredito, em taxas de lucro das empresas que não justificam novos investimentos (além da inflação persistentemente alta.) Se isso está correto, a política econômica dos próximos anos deve ser fortemente voltada para o lado da oferta, assumindo que, corretamente, as conquistas recentes em salários não podem retroceder e serão naturalmente defendidas pelos enormes grupos de interesse que se criaram em torno delas (a obviedade aparente do suicídio eleitoral que seria defender a desindexação do salário mínimo é um bom indicador da força dessa defesa.) Acho que, dentro da conjuntura, há pouco espaço para mais "trabalhismo" e muito para um "desenvolvimentismo" que tem pouco a ver com o significado que tem se dado à palavra. Criá-lo vai requerer muita criatividade e esforço de economistas e políticos que, por enquanto, ainda precisam gastar tempo e energia discutindo e pensando em questões como controle da inflação e disciplina fiscal.


Outros links:
—O paper de Voth e Voigtländer;
—Um resumo da pesquisa de Robert C. Allen;
—Se não conseguirem acessar o Temin no NBER, uma alternativa.